sábado, 16 de janeiro de 2016

"A Biografia", de Ana Miranda para O POVO


Ilustração: Carlus Campos

Mesmo sendo tão apreciada e frequentadora das listas de best-sellers, a biografia é tida como um gênero menor. Maiores, sabemos, apenas os PEN (do PEN Club): poetry, essay, novel. Poesia, ensaio e romance. Mas os leitores amam as biografias, querem conhecer a vida de gente célebre, como Getúlio Vargas, Carmem Miranda, Padre Cícero, Garrincha... Porém, o melhor efeito da leitura de uma biografia é que, enquanto temos a sensação de vivermos uma vida alheia, relembramos a nossa própria vida. Podemos, mesmo, reconstruir nosso percurso sob novos olhares.
É um dos gêneros literários mais antigos, e dos mais diversos. Há biografias literárias, genealógicas, militares, políticas, psicológicas, romanceadas, até mesmo as que omitem a obra do biografado, como uma de Poe, em que o autor, fascinado pelas mudanças de casa do contista, mal consegue reservar uma linha para os contos. Ou uma de Bolívar, outra de Napoleão, que não mencionam absolutamente nenhuma batalha desses militares.
As primeiras biografias eram tendenciosas, escritas com um intuito certeiro. As escritas por Plutarco sobre romanos e gregos tinham o interesse didático de comparar as virtudes das duas nações. As de Suetônio, sobre doze césares romanos, foram escritas como denúncia da tirania. Os flos-santórios, biografias de santos, no Cristianismo primitivo e no medieval, tratavam de dar exemplos de virtude religiosa e garantir seus resultados milagrosos. Apenas na Renascença foi descoberto o indivíduo como ser autônomo, quando se escreveram biografias de grandes artistas italianos e holandeses. Os protestantes aprofundaram, com as biografias dos reformadores, aspectos da psicologia e do exame de consciência. Só depois disso foi que surgiram as biografias de escritores, como a Vida dos poetas ingleses, de Samuel Johnson. Muitas delas eram escritas por admiradores incondicionais de seus biografados, como a de Dickens por J. Forster, e tinham cunho apologético, omitindo tudo o que fosse menos edificante.
A biografia hoje pretende ser documental, jornalística, desfiando os fatos, buscando a “verdade”, a “realidade”, tentando comprovar cada afirmação com documentos ou com testemunhos. E a sensação é mesmo de acompanharmos uma “realidade”, e de que tudo o que lemos é “verdade”. Mas, como disse Borges, “tão complexa é a realidade, tão fragmentária e tão simplificada a história que um observador onisciente poderia escrever um número indefinido, e quase infinito de biografias de um homem destacando fatos independentes, e só depois de ler muitas delas perceberíamos que seu protagonista é o mesmo”.
Pode-se escrever uma biografia dos sonhos de uma pessoa, outra, das mentiras que ela disse, outra, dos momentos em que ela imaginou pirâmides... Será que podemos confiar nas biografias? Do mesmo modo que confiamos nos historiadores, sim. E nos ficcionistas. Costumo dizer que os historiadores são ficcionistas que fingem estar dizendo a verdade; e os ficcionistas, historiadores que fingem estar mentindo.
A biografia de “desmascaramento” surgiu com a publicação de Vitorianos eminentes, sobre a rainha Vitória, escrita por Lytton Strachey. Ele usa o estudo psicológico para desvendar a verdade histórica, um método biográfico que exige as artes do romancista, tanto na análise como na narração.
O mais confiável biógrafo seria o próprio biografado, ele é quem mais se conhece e sabe sobre sua vida. Por outro lado, é o menos confiável, pois pode cair na tentação de, numa autobiografia, falsear sua vida e esconder fatos que o magoam ou envergonham. E, mesmo sendo uma pessoa honesta, vai selecionar os elementos que compõem o melhor – ou o pior – retrato de si mesmo.
Há biografias tão pequeninas que cabem numa frase. O Otto Lara Resende dizia que a sua era: Nasceu em São João Del Rei, viveu e morreu. Outras ocupam volumes de mil ou mais páginas, como a de Joyce, escrita por Richard Ellmann. A maior de todas, consta ser a de Samuel Johnson, composta por seu discípulo, Boswell, que chega a transcrever toda a correspondência do biografado, assim como muitas de suas longas conversas. E a melhor de todas, no meu entender, é a de Sir Richard Burton, escrita por Edward Rice. Burton foi um agente secreto que fez a peregrinação a Meca, descobriu o Kama Sutra e trouxe as Mil e uma noites para o Ocidente; explorador, aventureiro, militar, naturalista, falava 29 línguas, viveu o cotidiano de povos exóticos e deixou diários fabulosos.
A melhor biografia é aquela da vida que alguém gostaria de viver.


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