Ilustração: Carlus Campos
Mesmo sendo tão apreciada e
frequentadora das listas de best-sellers, a biografia é tida como um gênero
menor. Maiores, sabemos, apenas os PEN (do PEN Club): poetry, essay, novel.
Poesia, ensaio e romance. Mas os leitores amam as biografias, querem conhecer a
vida de gente célebre, como Getúlio Vargas, Carmem Miranda, Padre Cícero,
Garrincha... Porém, o melhor efeito da leitura de uma biografia é que, enquanto
temos a sensação de vivermos uma vida alheia, relembramos a nossa própria vida.
Podemos, mesmo, reconstruir nosso percurso sob novos olhares.
É um dos gêneros literários mais
antigos, e dos mais diversos. Há biografias literárias, genealógicas,
militares, políticas, psicológicas, romanceadas, até mesmo as que omitem a obra
do biografado, como uma de Poe, em que o autor, fascinado pelas mudanças de
casa do contista, mal consegue reservar uma linha para os contos. Ou uma de
Bolívar, outra de Napoleão, que não mencionam absolutamente nenhuma batalha
desses militares.
As primeiras biografias eram
tendenciosas, escritas com um intuito certeiro. As escritas por Plutarco sobre
romanos e gregos tinham o interesse didático de comparar as virtudes das duas
nações. As de Suetônio, sobre doze césares romanos, foram escritas como
denúncia da tirania. Os flos-santórios, biografias de santos, no Cristianismo
primitivo e no medieval, tratavam de dar exemplos de virtude religiosa e
garantir seus resultados milagrosos. Apenas na Renascença foi descoberto o
indivíduo como ser autônomo, quando se escreveram biografias de grandes
artistas italianos e holandeses. Os protestantes aprofundaram, com as
biografias dos reformadores, aspectos da psicologia e do exame de consciência.
Só depois disso foi que surgiram as biografias de escritores, como a Vida dos
poetas ingleses, de Samuel Johnson. Muitas delas eram escritas por admiradores
incondicionais de seus biografados, como a de Dickens por J. Forster, e tinham
cunho apologético, omitindo tudo o que fosse menos edificante.
A biografia hoje pretende ser
documental, jornalística, desfiando os fatos, buscando a “verdade”, a
“realidade”, tentando comprovar cada afirmação com documentos ou com
testemunhos. E a sensação é mesmo de acompanharmos uma “realidade”, e de que
tudo o que lemos é “verdade”. Mas, como disse Borges, “tão complexa é a
realidade, tão fragmentária e tão simplificada a história que um observador
onisciente poderia escrever um número indefinido, e quase infinito de
biografias de um homem destacando fatos independentes, e só depois de ler
muitas delas perceberíamos que seu protagonista é o mesmo”.
Pode-se escrever uma biografia dos
sonhos de uma pessoa, outra, das mentiras que ela disse, outra, dos momentos em
que ela imaginou pirâmides... Será que podemos confiar nas biografias? Do mesmo
modo que confiamos nos historiadores, sim. E nos ficcionistas. Costumo dizer
que os historiadores são ficcionistas que fingem estar dizendo a verdade; e os
ficcionistas, historiadores que fingem estar mentindo.
A biografia de “desmascaramento” surgiu
com a publicação de Vitorianos eminentes, sobre a rainha Vitória, escrita por
Lytton Strachey. Ele usa o estudo psicológico para desvendar a verdade
histórica, um método biográfico que exige as artes do romancista, tanto na
análise como na narração.
O mais confiável biógrafo seria o
próprio biografado, ele é quem mais se conhece e sabe sobre sua vida. Por outro
lado, é o menos confiável, pois pode cair na tentação de, numa autobiografia,
falsear sua vida e esconder fatos que o magoam ou envergonham. E, mesmo sendo
uma pessoa honesta, vai selecionar os elementos que compõem o melhor – ou o
pior – retrato de si mesmo.
Há biografias tão pequeninas que cabem
numa frase. O Otto Lara Resende dizia que a sua era: Nasceu em São João Del
Rei, viveu e morreu. Outras ocupam volumes de mil ou mais páginas, como a de
Joyce, escrita por Richard Ellmann. A maior de todas, consta ser a de Samuel
Johnson, composta por seu discípulo, Boswell, que chega a transcrever toda a
correspondência do biografado, assim como muitas de suas longas conversas. E a
melhor de todas, no meu entender, é a de Sir Richard Burton, escrita por Edward
Rice. Burton foi um agente secreto que fez a peregrinação a Meca, descobriu o
Kama Sutra e trouxe as Mil e uma noites para o Ocidente; explorador,
aventureiro, militar, naturalista, falava 29 línguas, viveu o cotidiano de
povos exóticos e deixou diários fabulosos.
A melhor biografia é aquela da vida que
alguém gostaria de viver.
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