sábado, 16 de janeiro de 2016

"Monólogo Poético", de Raymundo Netto para O POVO


Dava-se dia ensolarado e, à calçada, encontrei aquele escritor que acabara de lançar o livro príncipe. Poesia, para variar e aderir à coorte. O poeta, me reconhecendo em suposta conta de intelectual — tal como o próprio, certamente — discorreu sobre o sucesso do lançamento de tão aguardada obra. Sorrisando largo o olhar faiscante, segredou, com devido anúncio de reserva, que o “TT da madrugada” anunciara — coisa que fez também, e ele não sabia, com todos os 500 usuários de seu espaço cultural —, o recorde, o maior sucesso da história de lançamentos nesta província.
Discreto como um elefante dançando a macarena, citou a cifra de 100, ou quase isso, livros vendidos — lidos, não garantiria nem o da mãe — e isso porque presentes apenas os seus familiares — membro de família do interior, ocupou o auditório inteiro —, pois os dois escritores, os únicos que conhecia no Ceará, e, portanto para ele os melhores, prometeram de ir, mas no calor do derradeiro instante, diante de assuntos da mais absoluta relevância — e também diante da falta de desculpa mais original — não puderam comparecer, sendo entrementes gratos por tão elevado galardão.
Daí, não deu outra: haja falar compulso de tal “úbere opúsculo”, ler seus trechos, compará-los à obra drummondiana, quitaniana e poetiana em geraliana, explicar-me a escolha dos títulos, denunciar-me a dedo os neologismos e metáforas, enfim, decifrar o indecifrável como se a descobrir ali, em momento invulgar, após a abertura dos sarcófagos da pirâmide do Egito ou da última garrafa de Coca-Cola, o VERSO.
Já delongada a conferência de autoencômios, porém, embaciou o olhar, agora terno e doce. Prenunciava esgotar o martírio do monólogo posto em pé e debaixo de sufocante sol quando ainda desceu a voz, mais macia do que travesseiro de debutante:
— Desculpe-me, senhor, mas é que sou um apaixonado pela poesia. Quando começo, até me emociono... Não estou deixando-lhe falar, não é? Pois bem, agora é a sua vez... Fale um pouco do que achou do MEU livro.
Dito isso, assomou-se todo em orelhas e ouvidos, de me envergonhar por inteiro, certo de que nada que eu dissesse seria o suficiente ou tão preciso para exprimir a grandeza que ele achava — e sabia — que tinha. Uma palavra mal colocada ou esquecida poderia evocar daquela alma lírica e embevecida, os gran terríveis demônios, aqueles mesmos que se regozijam ante os destinos trágicos e merecidos dos poetas, mesmo os falsos e parcos, e que só enaltecem da aventura humana um único e transcendente sentimento: a inveja!
Fragilizado, pressionado e confuso, com a moleira a ferver e a garganta seca, antes de tremer o lábio, nem sei como, senti meus olhos arderem e, creiam, lagrimejarem.
O rapaz, surpreso, fitou-me os olhos saltados, esticou os lábios, quase maternos, tal qual rede em varanda, e, insílabo, abraçou-me demorosamente enquanto me apertava a lembrança, naquele momento, de perder a hora marcada com a minha oculista.


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