sexta-feira, 31 de março de 2023

Portfólio Editorial: "Coroa de Rosas e de Espinhos", de Mário da Silveira


PORTFÓLIO EDITORIAL: Coroa de Rosas e de Espinhos (fac-símile), obra póstuma do poeta Mário da Silveira (prefaciada por Antônio Sales), série Luz do Ceará, da Coleção Nossa Cultura da Secult (2010), com coordenação editorial e capa de Raymundo Netto (sobre a concepção de Mariano Souza), diagramação de Jozias Rodrigues, revisão de Raymundo Netto e Eveline Cunha, apresentação de Roberto Pontes, introdução de Tito Barros Leal e apêndice de Edigar de Alencar. Acrescemos na obra original outros textos seus, como: "No silêncio da noite" e "A eterna emotividade helênica" (128 pp).

O poeta foi assassinado na praça do Ferreira, aos 21 anos, em um crime passional, calando o autor do poema “Laus Purissimae”, o primeiro poema com características modernas do Ceará, escrito antes mesmo da Semana de Arte Moderna.

O retrato de Mário foi pintado por Otacílio de Azevedo.

A obra está disponível na Biblioteca Estadual do Ceará e em bibliotecas públicas dos municípios cearenses.





 

segunda-feira, 27 de março de 2023

"Dolorosa", de Raymundo Netto para O POVO


A sisuda e determinada viuvez de Dolorosa era de causar espanto até no falecido.

Não fosse para comprar o pão matutino, nunca de sair às ruas, de oferecer-se em janela e muito menos de se desocupar em calçada. Durante o dia, flagrada em oração diante do bem cuidado oratório, onde descansavam aromáticas flores do campo em torno do derradeiro retrato de seu inesquecível amor. Depois, por horas, calava a respiração na imagem do morto, impressa ainda mais no peito em luto. Assegurava cumprir a clausura em vida, pois se dava por jurada ao ser amado, aquele que, dizia, só lhe contrariara uma única vez: na prematura morte!

Assistindo àquele martírio, imploravam os amigos: “Tão moça. Vai, mulher, viva!”. Para Dolorosa, todavia, amor que o tempo consome não é amor. O verdadeiro, único e exclusivo amor, herança maior do Deus que um dia os unira, sobrepujava a tudo, inclusive, a ausência física, merecendo ele toda e qualquer renúncia. Realmente era esse seu pensamento. Uma agonia, porém, a enredara, justo na solidão das eternas noites solitárias, quando suores e desejos eram contidos violentamente a pedradas de vergonha pela casta consciência. Sim, vivia ela um dilema secreto: o despertar do querer por outro homem.

João era um jovem auxiliar de padaria, bem mais moço que Dolorosa. Há meses, naquele estabelecimento, um descuido: trocaram olhares, e, num desses, Dolorosa fraquejou. No momento não sabia, mas João já a observava. Soube ele daquela viuvez defendida a todo custo. Isso o atraía profundamente. Também ele, às noites, em seu catre cheirando a farinha, se via perdido em lençol e no domínio da branquidão do corpo intacto daquela mulher. Imaginava ela entregue e em delírios, por tanto vigor reprimido. Naquelas manhãs, mesmo quando apartados pela lonjura incalculável do balcão, lia, escrito nos olhos divinos dela, a recusa ao toque alheio. Vê-la, sentir a polpa dos seus dedos ao receber os trocados do pão, buscá-la no interior das janelas da casa escura, passaram a ser as suas motivações de existir nesse mundo.

Um dia, Dolorosa despertou lívida e mais cedo que o de costume. Aguardou a abertura das portas de ferro da padaria. Correu ao longo do balcão e dirigiu-se ao rapaz. Entregou-lhe um dinheiro: “Moço, preciso ir à rua. Você poderia levar meus pães mais tarde em minha casa?”

João, surpreso, não recusaria. Assim, ao vê-la passar de volta, imediatamente enrolou os pães e plantou-se à sua porta, cuja soleira, há anos, não cruzava um coração masculino.

Dolorosa o aguardava. Ávida, abriu a porta e, por instantes, os dois permaneceram parados e mudos. O que João não sabia é que ela não o via exatamente como a vida o pintara, mas, sim, um quadro mórbido e repugnante. O corpo em ruínas e farrapos. Os ossos e traços de músculos revelados por entre carnes escuras carcomidas em vermes. A caveira sorridente a denunciar olhos amarelecidos, a língua negra e seca. Apenas os restos da imagem do homem que um dia o marido, e não o João, foi.

Depois, cerrada a porta, a respiração de ambos abrasava a casa de tal modo que os espelhos da sala embaçaram, recusando assistir ao ritual feroz e lascivo daqueles amantes que exalavam, no ardor do suor e do amor, o perfume frio e acolhedor da mais fiel sepultura.







 

sábado, 25 de março de 2023

Portfólio Editorial: "Dolentes", de Lívio Barreto (Secult)


PORTFÓLIO EDITORIAL:

Dolentes (póstumo), de Lívio Barreto (1870-1895), pela série Luz do Ceará, da Coleção Nossa Cultura da Secult (2010), com coordenação editorial, capa, orelha, pesquisa iconográfica e revisão (ao lado de Sânzio de Azevedo) de Raymundo Netto, apresentação de Sânzio de Azevedo, organização de Braga Montenegro, apêndice de Waldomiro Cavalcanti e diagramação de Luiz Carlos Azevedo e Elias Saboia (244 pp). A imagem da capa foi colhida por mim em fotografia de um quadro na sala da sua família.

Obra maior do Simbolismo cearense. Aliás, o Simbolismo foi a maior novidade da Padaria Espiritual, agremiação da qual “Lucas Bizarro” (“nome de guerra” de Lívio Barreto) fazia parte.

Lívio Barreto nasceu em Granja, e foi lá que se deu o lançamento desta edição – e foi quando conheci a cidade – em parceria com a amiga Maria Ximenes. Faleceu muito cedo e foi chorado generosamente pelos seus colegas de grêmio no jornal “O Pão”.

A obra encontra-se disponível na Bece e em algumas, senão todas, bibliotecas públicas municipais do estado do Ceará.




 

sexta-feira, 24 de março de 2023

Combo "Padre Cícero: o filme" à venda nas Edições Demócrito Rocha (EDR)


No dia 24 de março, há 179 anos, nascia no Crato Cícero Romão Batista, conhecido e canonizado pelo povo brasileiro como Padre Cícero.

Em 1975, o diplomata Helder Martins iniciou em alguns municípios cearenses a filmagem de “Padre Cícero”, um longa-metragem, o primeiro colorido do Ceará e a primeira obra ficcional sobre a vida do sacerdote e a polêmica história dos milagres da hóstia consagrada. Este filme, lançado no Festival de Gramado, foi o filme mais caro naquele ano com apoio da Embrafilme.

Para tal, o filme contou com uma relevante equipe técnica (José Medeiro, Antônio Luís Mendes, Walter Carvalho, Cacá Diniz etc.),  e elenco do Cinema Nacional, como Jofre Soares, Rodolfo Arena, Dirce Migliaccio, José Lewgoy, Ana Miranda, Cristina Aché, Manfredo Colasanti, Emmanuel Cavalcanti. Muitos talentos cearenses da TV e do teatro embarcaram nesse projeto, tendo a sua primeira atuação no cinema, como Haroldo Serra, Ricardo Guilherme, Walden Luiz (melhor figurino), Antonieta Noronha, Nirton Venâncio, entre outros.

Após 40 anos, Raymundo Netto desenvolveu o projeto “Padre Cícero, o filme” composto de: (1) um livro, de autoria do próprio Raymundo, que traz a biografia do filme, seus bastidores, a história do primeiros 50 anos de cinema no Ceará; o roteiro original do filme e cerca de 200 notas histórias sobre padre Cícero e de referências; (2) pôster original do filme; (3) 1 kit com 2 DVDs, sendo o primeiro com o filme e o trailer original e o segundo com um documentário reunindo alguns dos membros da direção, do elenco e da equipe técnica.

“Padre Cícero” é um marco da historiografia cinematográfica brasileira. O combo “Padre Cícero, o filme”, ÚLTIMAS UNIDADES, que traz todos esses produtos, encontra-se disponível na livraria virtual das EDR (livrariaedr.org.br) por apenas R$ 50,00.

Vale a pena.






 

segunda-feira, 20 de março de 2023

"Pacatuba em Ruínas", de Raymundo Netto


Crédito da foto: Miguel Angelus Maia

O município de Pacatuba hoje está de LUTO*. É inadmissível e inconformável a situação de ruínas que então nos apresenta.

Cantada em verso e em prosa por muitos dos grandes autores das palavras do Ceará, a cidade, antes reconhecida pela existência e permanência de seus casarões, sobrados e casarios que resistiram durante anos, vem perdendo pouco a pouco o seu maior tesouro e maior atrativo: o seu patrimônio histórico e arquitetônico.

Em apenas três anos, dois casarões foram demolidos. Um deles, o maior de todos, o de Mariana Cabral, que conferia um charme todo especial à praça onde se encena a Paixão de Cristo.

Agora perdesse este sobrado que deveria ser para o povo pacatubano um símbolo da própria origem e orgulho da cidade, um dos dois sobrados (parede com parede) do capitão Henrique Gonçalves da Justa, o primeiro presidente da Câmara (leia-se intendente ou prefeito da cidade), também o primeiro arruador e grande benfeitor de Pacatuba, que empresta o seu nome, ainda hoje, à sua principal praça, que hoje assiste à tragédia causada não pelas águas da chuva, mas pela desmemória, pela ausência de legislação e políticas públicas eficientes nesse campo e, pior, por falta de vontade política e do clamor popular por longos e imperdíveis anos.

Dói-me supor que a população não sofra e não se envergonhe com isso.

Além dos referidos prédios demolidos, percebo, toda vez que volto a Pacatuba, mais casas descaracterizadas, sem nenhum incentivo de manutenção dessas fachadas. Este sobrado, percebia, cada vez mais abandonado, mesmo quando ainda ostentava na triste sacada de ferro as iniciais de seu saudoso proprietário: “H. G. J.”.

Em sua História da Seca, Rodolfo Teófilo, protegido e grande amigo do capitão Henrique, escreve que no dia de sua morte “a florescente Vila de Pacatuba cobria-se de luto e pranteava a morte do seu benfeitor, o capitão Henrique Gonçalves da Justa. A fatalidade pesava IMPLACÁVEL sobre a família cearense. Henrique Justa [...] dedicou-se, desde os verdes anos [...] a trabalhar pelo engrandecimento e prosperidade de Pacatuba, então pequena e acanhada povoação. Empregou grande parte dos seus capitais em construir casas, aformoseando assim a futura vila, influiu para a regularidade dos serviços públicos, animou a instrução, desenvolveu mais a indústria, deu-lhe todos os elementos de prosperidade. Progredindo assim a Pacatuba, e já ligada à capital por uma linha férrea, foi elevada à vila, de cuja Câmara Municipal foi ele o primeiro presidente.”

Agora essa fatalidade. A sua residência, supostamente também a primeira sede da farmácia de Rodolfo Teófilo, líder do movimento abolicionista em Pacatuba, desmorona. Dizem que vão demolir para segurança dos cidadãos. Há, sim, o risco de que, caso desabe, possa também trazer com ele o outro sobrado, o denominado de “Sobrado da Abolição”, em ótimo estado, restaurado e com uma função pública excepcional na cidade (aliás, atualmente em crise, com cursos cancelados por falta do apoio da Secretaria da Cultura do município).

Não podemos permitir que aconteça esse desastre, mas gostaríamos, sim, que a Secretaria da Cultura do Estado se manifestasse por meio de seu Conselho, em interlocução com a Prefeitura Municipal de Pacatuba e a sua Secretaria da Cultura, que não se calassem diante do sinistro e que não deixasse mais este caso impune. 


(*) o acontecido se deu em 18 de março de 2023.




 

sábado, 18 de março de 2023

Portfólio Editorial: Sobral do Meu Tempo: 30 anos, de Lustosa da Costa


PORTFÓLIO EDITORIAL: Sobral do Meu Tempo, edição comemorativa de 30 anos da primeira edição, do jornalista, escritor e amigo Lustosa da Costa, com coordenação editorial, capa, projeto gráfico, digitalização, revisão, copidesque, pesquisa iconográfica, fotos e capa de Raymundo Netto.

A obra traz a apresentação de José Ferreira Portella Neto e Frota Neto, consultoria de Edmo Linhares, texto de quarta capa de Juarez Leitão, diagramação e tratamento de imagens de Francisco Batista (296 pp).

Lustosa convidou-me a almoçar no restaurante do Ideal Clube, havia toda uma história de vida que passava por ali. Em algum momento falou-me sobre esse livro e me disse, entre tantas outras coisas, que publicá-lo novamente “seria um sonho”. Anos e livros depois, conseguiríamos concluir a segunda edição (difícil) dessa obra.

Por motivo de saúde, ele, na época internado, não conseguiu participar do lançamento desta edição no Ideal Clube, que contou com a participação de seus familiares, amigos e leitores.

Não demorou muito e, ainda naquele ano, Lustosa, em 3 de outubro de 2012, partiria deste plano. Tinha 74 anos e era ainda muito jovem e desejoso de publicar mais livros.

Ainda hoje, a biblioteca pública municipal de Sobral traz o seu nome, homenagem em vida, um de seus maiores orgulhos.




 

Portfólio Editorial: "O Canto Novo da Raça"


PORTFÓLIO EDITORIAL: O Canto Novo da Raça, de Jáder de Carvalho, Sidney Netto, Mozart Firmeza (Pereira Jr.) e Franklin Nascimento, série Luz do Ceará, da Coleção Nossa Cultura da Secult (2011), com coordenação editorial, capa, projeto gráfico, revisão, digitação, pesquisa e apêndice ("História de uma Biografia perdida") de Raymundo Netto, apresentação de Sânzio de Azevedo, diagramação de Elias Saboia e ilustrações do imortal multiartista e amigo Audifax Rios.

A obra é considerada marco do Modernismo cearense, e, antes dessa, só teria apenas uma única edição (em restrita tiragem), em 1927.

Na época em que publiquei essa série de livros pela Secult, um trabalho, modéstia às favas, heroico, foi um dos títulos que mais gostei de publicar e distribuir.

Encontra-se disponível na Biblioteca Pública do Estado do Ceará (Bece), entre outras bibliotecas públicas municipais distribuídas em todo o estado.


 


 

quinta-feira, 16 de março de 2023

TBT Raymundo Netto (talvez 1974)


Minha mãe entrou pela casa pedindo para que todos os 5 filhos (na época não tinha nascido a caçula Maria Thereza) se arrumassem, pois lá fora já esperava um fotógrafo, daqueles de porta em porta, que cruzava o Monte Castelo.

Foi aquela algazarra, todo mundo colocando suas gastas botinhas ortopédicas, sua roupa de festa ou mesmo empunhando seu brinquedo favorito (como foi o caso da Alice com a sua “Suzie”).

Na pressa e euforia, “tirar retrato” era coisa rara (e cara), ainda saí com marca no queixo do Nescau (“A energia que dá gosto”) que tomei ligeiro na cozinha.

Aquelas crianças, cadeiras cativas da “Vila Sésamo” (TV Globo) e dos desenhos de Hanna-Barbera (na época, debruçados sobre uma TV Admiral P&B 17 polegadas), desbravadores do imaginário de um quintal para eles imenso, nem pensavam na importância que seria para eles desse registro.

Éramos 5, mas em breve seríamos 6, como num famoso e hoje quase esquecido romance de Maria José Dupré (1898-1984).


Zilma, José, Netto, Alice e Luiz Antônio (Tony)
Talvez, 1974.






 

terça-feira, 14 de março de 2023

"Livraria Cultura: vítima ou algoz?", de Raymundo Netto para a "Opinião" do jornal O POVO


A falência da Livraria Cultura, decerto, não seria uma surpresa. Digo “seria”, pois após intensa choradeira, este mês, ela foi (por ora) suspensa. De todo modo, desde setembro de 2021, quando fechou as portas da sede do RioMar Fortaleza, ela não fazia mais parte do corpo da cidade.

A Saraiva segue o mesmo caminho. Não demora e ouviremos os mesmos suspiros e lamentos de uma outra história, que é a mesma, e é só. Por outro lado, há outras histórias tristes, tristíssimas, que poucos conhecem (ou lembram). Antes da chegada das megalivrarias, existiam outras, as “de bairro” ou “de rua”, com seus nichos e públicos acolhidos que se reconheciam nelas. Contudo, o apelo comercial (leia-se marketing pesado), os cafés, o glamour e a imensa diversidade de títulos e produtos outros, acrescidos ao fascínio do fortalezense pela novidade, as esvaziaram, de forma que elas também cerraram as suas portas. No entanto, os lamentos ouvidos não deixaram o mercado nervoso.

Enquanto isso, as mega prosperavam, cobravam 50% do valor de capa dos livros que vendiam, botavam banca para receber livros e pressa nenhuma em prestar contas dessas vendas às editoras, e isto quando as faziam, além de não ter compromisso algum em disponibilizar espaço para os(as) autores(as) locais, o que seria uma simpática e justificada iniciativa. Ou seja, pousaram na cidade como discos voadores repletos de luzes coloridas, abduziram os clientes das modestas livrarias, acabando com a concorrência, não ofereciam vantagens para as editoras e escritores locais, e o resultado hoje é uma dívida enorme, inclusive com diversas editoras – é possível que tenham quebrado algumas também –, além de ter deixado, como pragas, uma cidade árida de livrarias.

Aliás, sabia que no século XIX tínhamos em Fortaleza mais livrarias do que temos hoje? Advirto: nada disso tem a ver com a discussão cansada de que “ninguém mais lê” ou que “o livro físico vai acabar” e o sucesso – que não aconteceu – das vendas de e-books. Claro, falar em mercado editorial é tão mais complexo quanto discutir se a fruta do pecado é a maçã inglesa ou a aramaica manga. Todas as cadeias desse negócio estão se rebolando para encontrar estratégias e alternativas de sobrevivência. Insumos caros, economia péssima e um apoio governamental de sobrar espaço no pires. Para piorar, a pirataria tecnológica, que transforma tudo que é belo em PDF, está à solta nas mãos de qualquer leitor proficiente em smartphones e as lojas virtuais das grandes editoras concorrem com essas livrarias a insistir em abrir as portas para visitas, hoje, muito parecidas como as de museus.


DICA: Conheçam, enquanto podem, a Livraria Lamarca, a Arte & Ciência, o Sebo O Geraldo...

 


 

segunda-feira, 13 de março de 2023

"Amante" (na íntegra/todos os capítulos), de Raymundo Netto para O POVO


Lírios Azuis são promessas de amor eterno”, disse Ramon, oferecendo-os com toda ingênua pompa de adolescente recém-aberto à possibilidade de morrer de amor, diante de sua amada Vitória, em seu primeiro aniversário juntos, assim como o faria nos demais, desde que iniciado aquele romance.

O casal se conhecera na escola, no ensino médio. Para Ramon, o primeiro encontro de olhares bastaria para que não mais a perdesse de vista. Diziam os colegas de sala serem feitos um para o outro, inseparáveis, como todos os grandes enamorados de novela, condenados a serem felizes para sempre.

Naqueles anos, além da companhia em carteiras de sala de aula, da saraivada de beijos incessantes e velados nos fundos da cantina durante o recreio, em pares nas atividades e festas escolares, enfrentaram muitas noites juntos, fossem debruçados em apostilas às vésperas de provas, em livros de poesia – pois se permitiam ouvir a voz de anjos – ou por vezes sobre seus corpos nus, em ebulição, quase virgens, em plena alfabetização sexual.

Ao final do curso, ela passou para a Psicologia e ele em Jornalismo. Comemoraram num contentamento de ganhadores de loteria, farto de planos de futuro: muitos filhos, uma casa no campo, escreveriam livros, viajariam, teriam uma música, cachorros, gatos, papagaios e uma velhice extraordinária. Porém, o amor se dá a distrações, e Vitória conheceria Carlos, um aluno do curso de Engenharia que, ao contrário do romântico Ramon, não elaborava projetos alucinados, sustentados em longarinas de sonhos, mas sobre metas, orçamentos e formulentas planilhas. Desde então, os encontros seriam inexplicavelmente adiados um a um, até quando Ramon soube pelo colega Nestor – parece que sempre há um em nossas vidas – sobre o suposto flerte entre Vitória e Carlos.

O seu mundo quedou-se ali mesmo. Ramon não poderia nem queria crer. Só de pensar, morria. Ligou para Vitória. Marcariam um encontro. Ela adiou o quanto pôde, lançando todas as desculpas, as mais esfarrapadas, mas, diante da insistência, cedeu.

Quando Vitória chegou à praça, Ramon não reconheceu o seu olhar, aquele que o conquistou. Sentiu-se, desde então, fracassado. Mesmo assim, criou coragem para exaltar o seu amor, o mais sincero e sem igual no mundo – como todos, aliás. Gesticulava, falava, falava, falava, com receio do inesperado e até então desconhecido silêncio que poderia abater-se entre os dois. As lágrimas desciam navalhando o seu rosto... Porém, percebia que ela, numa frieza beirando a crueldade, de braços cruzados, evitava olhar para ele. Enquanto tentava convencê-la, ela murmurava, impaciente, “que sabia de tudo aquilo, que sabia, mas que era outra coisa”. Ela se repetia, embaraçada, duas, três vezes, maquinalmente: “sabia de tudo aquilo, mas que era outra coisa”. Sentia-se péssima ali, pronta para correr se pudesse. 

Ramon calou-se. Assistindo àquele constrangimento e ciente de que dali não sairia mais nada, sentiu-se ridículo, de uma estupidez medonha. Ora, Vitória era uma manteiga derretida, chorava até em propaganda de fraldas de bebê, mas não derramara uma lágrima sequer diante do seu amargo e profundo sofrimento. Será que ele não merecia uma lagrimazinha de nada depois de tudo que viveram juntos? Não, aquela era a mais absoluta negação que poderia sofrer. “Pois era só isso”, disse e tomou o seu rumo sem olhar para trás, sendo-lhe insuportável assisti-la certamente aliviada e pronta para revelar ao mundo o seu novo amor. Daí, nunca mais a procuraria, mesmo quando indignado recebeu em uma sacola de papel a devolução de cartas, poemas, presentes e fotografias. Tudo acabado de uma vez por todas!

Curiosamente, a única coisa que nunca mudou foi o envio de buquês de lírios azuis sempre na data do aniversário dela. Com ele, um cartão oficioso, quase desinteressado: “Parabéns” e o endereço atualizado de e-mail e telefone. E só!

 

***

 

Vinte e cinco anos depois, não parecia ser o seu aniversário se Vitória não recebesse aqueles lírios azuis e os colocasse no vaso da mesa de centro da sala, bem ali, diante de Carlos, seu então marido, e da família que crescia.

Do nada, à noite, na hora da bem frequentada e animada comemoração, não seria estranho se nós a encontrássemos mergulhada no sofá, os pequenos pés na mesinha de centro, bebendo uma taça de vinho, sorrindo sozinha, com o pensamento distante e os olhos voltados para os lírios, alheia à zoada de Carlos, a trocar velhas e grosseiras piadas com seus amigos já alegremente bêbados, tirando troça com as suas esposas, boa parte delas, assim como de seus filhos, espalhada nos cômodos do apartamento ou em fuga nos celulares, videogames ou na TV.

Ao final da festa, no silêncio mais perigoso da noite, saía preguiçosamente a colher as taças e os pratos esquecidos na varanda e na sala. Ao cruzar pelos lírios, chegava-lhe, como um sussurro: “Ele ainda pensa em mim.”

No entanto, jamais ligou para Ramon. Não enviava e-mails nem mensagens de mais simples agradecimento. Se quisesse, ele procurasse por ela. Não se esquecia de seu aniversário, de enviar aqueles lírios, por que não ligava? Tanto tempo se passou desde a última vez que se falaram... Não poderiam ser amigos? E assim, a vida tomava o seu rumo. Na verdade, ela, imersa nas atividades profissionais, nos cuidados com os filhos, com o marido e com a mãe viúva, nunca se lembrava de Ramon, até a chegada daqueles lírios azuis.

Nos frequentes encontros com as amigas da escola, em divertidos momentos de revelações constrangedoras e lembranças batidas do passado, vez ou outra alguém perguntava por ele e, espontaneamente, todas olhavam para ela, esperando alguma novidade que nunca veio.

Contudo, chegou mais um esperado dia de seu aniversário... e nada dos lírios! Vitória estranhou. Não podia ouvir tocar o interfone que logo pensava: “São eles!” Mas não eram. Ligou à portaria. Perguntou se deixaram algo para ela, e avisou que não sairia de casa, caso chegassem.

Ansiosa, parou em frente ao espelho do banheiro. Incomodou-a as raízes brancas dos cabelos, as rugas em torno dos olhos tristes ao simular um sorriso desmotivado, a falta de um pulsar que embaraçasse o coração. Estava velha? Acabou, é isso? Nunca mais?

O marido, ao contrário, chegava entusiasmado, trazendo cerveja e carne para churrasco, fazendo algazarra com os filhos. Era também dia de jogo e havia chamado os amigos. Vitória respondeu com uma imediata dor de cabeça. Fechou as cortinas do quarto e colocou o lençol no rosto para esconder o sofrimento que lhe escorria na face.

Foi aquele o aniversário mais deprimente de sua vida. Os amigos estranharam: “Ela tá doente?” Carlos não notou: “Está? Não sei.”

No sofá, fingia a duras penas ouvir as amigas sobre a nova série daquele “homem liiindooo”. Evitava olhar para a mesinha de centro, desnuda e profundamente triste, a suportar no peito a dor do misterioso abandono.

No dia seguinte, dormira mal, ficou em casa. Inconformada, decidiu ligar para ele, mesmo faltando-lhe o ar e a coragem: “Alô, Ramon?” Porém, do outro lado da linha, uma mulher: “Pois não, aqui é Jandira.”

Que maçada! Claro, ele poderia ter outra pessoa, sabia lá, uma esposa, namorada... Jandira continuou: “Mas esse telefone é mesmo do Ramon. Quem deseja falar com ele?” “Uma amiga”, respondeu. A voz do outro lado da linha alteou: “Ah, você é a mulher dos lírios?”

Em pânico, Vitória desligou o telefone e caiu, quase desmaiada, no sofá: “Que burra!”.

O telefone tocou. Era Jandira. Mesmo assustada, Vitória segurou a respiração e o atendeu, afinal, não devia nada a ninguém. A mulher foi direta ao assunto: “Eu sou a irmã dele. Ramon está morto.”

 

***

 

Vitória batia à porta de Jandira logo na manhã seguinte à súbita conversa telefônica na qual revelava: “o coração de Ramon parou pela segunda e última vez”. Conforme a lacônica irmã, a primeira fora quando se sentira rejeitado pela mulher amada: “Depois daquele dia, nunca mais foi o mesmo. Acabou-se, fechou-se para o mundo e para a vida.”

Surpresa, Jandira abriu a porta para Vitória. No entanto, entre a hesitação de convidá-la ou não, a assistiu entrar ligeiro na sala, pelo visto trazendo o mesmo peso de silêncio na alma. Não a ofereceu nada, nenhuma gentileza ou cordialidade. Vitória parecia abalada, como se procurasse algo que perdera e que, apesar do tempo, nunca dera conta. Sentou-se no sofá e pediu desculpas por não a ter reconhecido por nome durante a ligação. Claro, era a irmã de Ramon. Não a conhecera pessoalmente, mas o namorado falava muito dela, pois sendo eles órfãos, Jandira era o que ele tinha, não apenas como família, mas como mãe. Jandira sentou-se na cadeira de balanço ao lado de um antigo aparelho de TV. Sentia alfinetar os olhos, disfarçou o tremor do queixo, mas não chorou: “É verdade, eu era ‘irmãe’ dele... do Ramon. Pobre menino, se deixou levar.”

Vitória, com um incômodo sorriso de canto de boca e o olhar perdido no além, ajeitou os óculos e pôs-se, carinhosamente, a falar dele, do adolescente que ele foi, coisas das quais conhecera bastante e compartilhara com ele mais do que com qualquer outra pessoa. E, naquele instante, estranhava ela própria ainda lembrar de tudo aquilo com tantos detalhes. Entre essas lembranças, não diria nunca, mas estava aquela casa. Só fora ali uma única vez, a namorar, justamente aproveitando a ausência de Jandira.

A irmã ouvia tudo aquilo em um misto de indignação e de saudade. Uma vontade de mandá-la à rua. Ao mesmo tempo, de trancá-la e guardar para sempre aquelas memórias tão queridas. Suspirou e, de repente, ergueu-se: “Quer conhecer o quarto dele? Está como ele deixou. Não tive coragem de...” Engoliu a voz, espremendo toda sua dor no rosto vermelhecido.

Vitória levantou-se assombrada. De certa forma, achava quase um sacrilégio entrar no quarto do ex-namorado, mas a curiosidade aliada àquela tensão a conduziu.

Seu coração batia forte ao entrar no quarto úmido, escuro e abafado. Impossível não ser contaminada pela melancolia ali apresada. Jandira abriu a janela e saiu.

Vitória, sem ter a certeza de que deveria ou queria estar ali, passou um tempo em pé, quase imóvel, segurando com as duas mãos a alça da bolsa encostada nos joelhos. Após uma breve panorâmica, caminhou lentamente pelo quarto de piso em tacos, a começar pela mesa de trabalho onde encontrou em um velho porta-retrato – um presente dela – uma foto do casal. Ela sorriu. Pareciam tão felizes, tão lindos. Largou a bolsa no chão e, involuntariamente, trouxe com as duas mãos o retrato ao peito, enquanto na sua memória despontavam vozes, promessas e risos, muitos risos. Sim, estavam felizes. Se amavam. E pela primeira vez em tantos anos verteu uma lágrima, talvez não por ele, mas por ela, por aquela felicidade pintada no retrato, apenas nele, não a reconhecendo mais. Mantendo-o ao peito com uma das mãos, passou a vasculhar em torno com a outra. Livros, revistas, canetas, uma antiga máquina de escrever, o notebook e, preso a um clipe, uma outra foto. Desta vez, não é ela, mas outra: “É Virgínia.”

“Virgínia e Vitória”, desde a escola apelidadas de “as gêmeas” devido à semelhança física e a amizade “grudenta” entre elas. Não havia segredos. Viajavam juntas. Dormiam uma na casa da outra e, durante um tempo, até usavam roupas iguais. As melhores amigas, até o surgimento de Ramon, já no ensino médio. O namoro deles, naturalmente, as afastou. Pensava nisso ao olhar aquela desconhecida foto, quando Jandira entrou no quarto: “Você se lembra dessa moça?” “Sim, claro, é... era minha amiga”. Jandira deitou, lenta e pensativa, uma bandeja com uma xícara de café sobre a mesa e, com um tom enrouquecido, revelou: “Ela namorou ele quando você... você sabe.”

 

***

 

Durante os próximos dias, a cena se repetiria. Geralmente à tarde, após o almoço, nas saídas do trabalho para resolver questões pessoais: Vitória batia à porta e mal Jandira a abria, adentrava. Esta, mesmo incomodada com a frequente e absurda visita, nada dizia, apenas meneava a cabeça ao vê-la sem cerimônia trancar-se no quarto do irmão. 

  Deitando a bolsa na cadeira, Vitória iniciava ali mais uma exploração de reconhecimento. Folheava e lia os livros da estante, recados em post-its, diários avulsos nas gavetas e os poucos álbuns de fotografias. O que buscava, não sabia ao certo, mas há dias uma excitação não a permitia trabalhar nem dormir. Por vezes, à noite, o marido, ao chegar ao seu quarto, a encontrava chorosa, distante. Discreto, pegava o travesseiro e um lençol: “Vou dormir na sala, amor. Está quente aqui.” Jamais passaria por sua cabeça que a esposa sofria de uma angústia obstinada de recordar e encontrar-se com outro homem.

Vitória ousou ligar a vitrola e deixou tocar o compacto pousado no prato: “You know that it would be untrue/You know that I would be a liar…” Entrou no banheiro, evitando olhar-se no espelho. Abriu o armário: ansiolíticos, antidepressivos, analgésicos. Sobre a pia, uma escova de cabelo. Pegou-a lentamente. Havia alguns fios nela: “Ramon!” A menção, a meia-voz, daquele nome ali ecoou, deixando-a trêmula, arrepiada, largando involuntariamente a escova. Passado o súbito mal-estar, pegou-a do chão e dela colheu aqueles fios de cabelo: “Grisalhos... estavam grisalhos.” Sentou-se no vaso e passou a observar, entre as polpas dos dedos, aquele achado. Apropriava-se da sua textura e tentava, fechando os olhos, cheirando-os e passando-os delicadamente pelo rosto, sentir a sua presença. Lembrava: escorria os seus dedos pelos cabelos do namorado, em carícias lentas, enquanto ele, alegre, contava histórias. Encantada, ela estenderia seus lábios àquele sorriso: “Era tão lindo.” Levantou-se. Correu para a sua bolsa, de onde tirou o estojinho do espelho e lá os guardou com o cuidado e a hesitação de quem rouba.

No guarda-roupa, em cuja porta se liam os versos “Todo grande amor só é bem grande se for triste”, encontrou, envolvidos em saco de papel, as cartas e fotos, entre outras coisas que havia devolvido a ele há mais de vinte e cinco anos, assim como as suas também. Com a poeira, vinha uma série de sentimentos de uma outra Vitória já esquecida, exceto por ele: medo, tristeza, incerteza e remorso. 

Anoitecia. No entanto, decidiu ler aquelas cartas. Surpreendeu-a tamanha ingenuidade e inocência. Ali estava uma garota inexperiente, sonhadora – era canceriana –, sentindo-se a mulher mais amada do mundo, apaixonada por um rapaz tão tolo, outra criança, talvez mais do que ela. Dois espíritos que se perderam ao viver um amor que, hoje, ela cria não existir. Mas se esse amor era uma mentira, o que é que estava presenciando ali? O que era tudo aquilo? “Vitória, eu a amo tanto, mais do que tudo, mas do que a mim mesmo.” Passava de uma carta para a outra com o coração apertado de doer. Era uma tragédia. Um amor mórbido a arrancar a vontade de viver de Ramon, compensando a ausência dela com a mais pura saudade. 

Olhou para a cama dele, no centro do quarto, descalçou os sapatos e entregou-se a ela – evitava-a –, aos soluços, agarrando o travesseiro contra as pálpebras umedecidas, e, em instante irrefletido, numa franqueza quase infantil, pedia-lhe perdão.

O quarto escuro recendia ruína. Sobre o corpo de bruços, então indefeso e adormecido, via-se pairar por inteiro uma inusitada sombra, como se a resguardá-lo gentilmente das dores irreparáveis de um passado morto, porém reaceso de paixão. 

 

***

 

Desde que Jandira anunciou a ela o inesperado namoro entre Ramon e Virgínia, Vitória se pôs a investigar o paradeiro daquela que fora a sua melhor amiga e companheira dos tempos de infância e adolescência no colégio.

Nas reuniões anuais entre as colegas daquela instituição de formação católica – elas, às vezes, nem tanto –, a ausência da divertida Virgínia era notada, contudo, havia logo um breve silêncio seguido por uma mudança drástica de assunto. A própria Vitória perguntara diversas vezes por “aquela danada”, mas ninguém a respondia... e agora ela imaginava o porquê. 

Conseguiu, com muita insistência, o seu número de telefone. Ligou. Para Virgínia foi uma surpresa atroz: Vitória a convidava para um encontro. Precisavam conversar. Após a primeira ligação, quase maquinal, veio a segunda, a terceira, já com sinais de irritação, depois a derradeira, até finalmente convencê-la.

Era uma tarde de domingo. Após a habitual missa, Vitória a encontrou em um banco de uma significativa praça do passado, embaixo de uma árvore que um dia chamaram de “nossa”. Embora não tivesse certeza do rumo que aquela conversa tomaria, determinada, Vitória estava tranquila, ao contrário de Virgínia, absolutamente incomodada.

Vitória foi objetiva. Com a fala pausada, contou como soube da morte de Ramon, do seu encontro com Jandira, e de um suposto namoro entre Ramon e Virgínia: “Você nunca me disse nada. Não me procurou. Nós éramos amigas. Por quê?”

Abalada e com uma expressão emotiva, Virgínia, a princípio, relutou a externar toda aquela memória doída e traumática, porém, talvez por ainda guardar em seu íntimo alguma centelha daquela amizade antiga, aos poucos deixou transbordar tudo aquilo que a machucava há tantos anos, coisas a que ela atribuía a sua atual infelicidade e a sequência de pesadelos de sua existência. Para ela, Vitória foi uma sombra que a perseguiu em tudo. Ela era a causa de tudo. Sim, ao conhecer Ramon, egoísta, abandonou a amizade e desprezou, sem explicação, a sua presença. Ela, Virgínia, assistiu ignorada àquele amor que ela não tinha nem teria pelo mesmo homem: “Como a mim, você também o rejeitou. Éramos, nós dois, os usados e excluídos da sua vida à sua conveniência. Aproximei-me dele. Entendia o que sentia. Tentei confortá-lo. Ele quis namorar e eu me entreguei, pensando ser possível fazê-lo tão feliz quanto ele era com você. Não consegui.” Suspirou profundamente. Conteve a dor daquele insuportável fracasso e continuou: “Ele, nem sei se tinha consciência disso, me chamava por seu nome, perguntava-me de você, queria saber histórias suas. Insistia em sabê-las, mesmo quando eu não as queria contar. Ah, que eu achava doentia essa fixação dele, mas, com pouco, percebi ser ainda mais doentio eu me render a isso, fazer esse papel de sua dublê. ‘Gêmeas’... era assim que nos chamavam na escola, não era?”. Meneou a cabeça, baixando a testa por sobre o punho: “Por quê? Deus, eu queria que desse certo, pois eu o amei... Mas ele não. Ele sempre a amou. Só a você. Mesmo depois de tudo... Ah, que ódio eu sentia de você, Vi. Quis que morresse, nos deixasse em paz! Pensava: o que essa mulher tem nessa boca que o enfeitiçou assim? Você é uma bruxa... Lembra? Eu sempre disse que você era uma bruxa.”

“Me beija.”, disse Vitória subitamente. Pasma, Virgínia perguntou se ela estava maluca. “Anda, me beija. Você não quer saber como eu enfeitiço as pessoas? Me Beija. Ou não tem coragem?” Desafiada, Virgínia tomou seu rosto entre as mãos e a beijou. Um beijo de almas, repleto de mágoas, mas também de saudades. Dois corações frágeis, ali irmanados em incertezas e conflitos profundos. Depois, olhando firme nos olhos tristes da outra, Virgínia manifestou um primeiro e ainda tímido sorriso: “Não, não é lá essas coisas... Eca!” E esfregou a manga da blusa nos lábios, estendendo uma gargalhada represada na juventude, compartilhada com Vitória, naquele momento, com os olhos cheios d’água.

Como meninas, abraçaram-se e falaram por horas, sem parar. Vinham-lhes lembranças, dores, angústias, mas também as alegrias e descobertas de uma vida inteira.

Anoitecia e ainda podia-se ver aquelas mulheres de mãos dadas no banco de praça, envolvidas num halo de emoção, quando, em um instante, Vitória beijou o dorso da mão da amiga, suspirou e a revelou: “Ele... Ramon... me pediu em casamento.”

 

***

 

Aconteceu durante a festa de formatura da escola”, descreveu Vitória à amiga. “Enquanto todos estávamos muito felizes, mesmo diante da tensão de um Vestibular, Ramon, naquela noite, eu sentia, estava demasiadamente eufórico. Mas ele era bem assim mesmo, pensei... Quando deram início à dança dos formandos, ele me abraçou e dançamos. Creio que ambos aguardávamos muito aquele momento. Senti o mundo desaparecer à nossa volta, assim como o chão de nossos pés. Ainda consigo lembrar-me da música [“A Whiter Shade of Pale”], da sensação de ter o seu coração pulsando acelerado tão ao lado do meu. Nossos dedos entrelaçados, o seu perfume de sempre e o olhar dele posto em mim. Acho que essa é uma das coisas que mais me impressionavam e que eu amava nele: o olhar. Eu tinha a impressão de que ninguém me via como ele. Para ele, eu era realmente importante. Ele me fazia acreditar nisso: eu era importante.” Silenciou como se a mergulhar naquela lembrança: “De repente, ele me tirou do salão. No jardim, abraçou-me e nos beijamos. Então, tirou do bolso do paletó uma caixa. Era, claro, uma aliança. Ali, tremendo e com aquele sorrisão no rosto, me pedia em casamento. Vê se pode? Ele querendo enfiá-la em meu dedo e eu dizendo que não era assim. Não havíamos conversado, não podíamos assumir aquilo. Éramos jovens demais... ‘Minha família não vai aceitar’, eu disse, e ele, como se decide ir à esquina, sugeriu: ‘Nós fugimos!’. ‘Você quer matar a minha mãe?’ Sim, eu sei, foi bem infantil, mas nós éramos assim mesmo: crianças. Disse que iria pensar... mas eu não queria pensar. Não, não. Estava apavorada! Depois, durante as provas do Vestibular e no início de curso na faculdade, consegui adiar esse papo. Vez por outra ele insistia, cobrava-me uma decisão e, diante de sua falta, alegava eu não ter certeza de amá-lo. No entanto, certeza mesmo eu tinha de querer me formar, concentrar-me na profissão escolhida, ganhar o meu dinheiro, viajar, conhecer pessoas, tantas coisas... Já Ramon queria casar logo e ter filhos. Moraríamos com a irmã dele no início, arranjaria um trabalho qualquer enquanto concluía o seu curso... Eu não queria nada disso. Foi quando conheci o Carlos. Como eu, estagiava na área, já reunia economias, queria abraçar a futura profissão, curtia a vida e namorava sem gerar expectativas. Acho que isso me atraiu. Não aguentava mais aquela pressão do Ramon. Tinha que acabar com aquilo, mesmo que me doesse e o machucasse. Pensava: ‘Se tiver que ser, um dia nos encontraremos novamente’, o que sabemos, nunca aconteceu”.

Virgínia ouvira toda a história. Levantou-se e, em despedida, abraçou a outra: “Vi, eu não conheci esse Ramon. O homem que esteve comigo era infeliz, desesperançado, a ponto de sua tristeza não caber nele. Pior: tinha de sobra para distribuir a quem tivesse coragem de estar ao seu lado... como eu. Ele era incapaz de enxergar qualquer futuro. Vivia apenas para remoer o passado, pois era lá, somente lá, onde ele poderia encontrar você.”

Assim, impossível seria dormir naquela noite. No dia seguinte, como em outros antes, bateria à porta da casa de Ramon para mais uma excursão silenciosa ao seu encontro.

Jandira demorou mais do que o de costume para atendê-la. Sua fisionomia também não era das melhores. Acostumada, Vitória entrou e, quando abriu a porta, estarreceu: o quarto estava completamente vazio! Voltou-se para a sala e ouviu de Jandira: “Eu tinha que acabar com isso. É muito louco, é imoral. Você tem que deixá-lo descansar. Ele está morto, criatura... morto! É tarde demais para ele... mas para você... Esqueça. Pelo amor de Deus, esqueça.”

 

***

 

Vitória quedou-se no piso do quarto de Ramon durante um bom tempo a chorar.

Jandira havia vendido, doado e até queimado o que restara de lembranças do irmão. Vitória não imaginava o quanto as suas idas àquela casa a perturbava. Entretanto, estava certa: tinha que parar. Ergueu-se, despediu-se de Jandira e, arruinada, voltou para casa.

Aproveitando o silêncio do apartamento, tirou da bolsa o seu estojo de pintura e colheu de lá a mecha grisalha arrebatada do seu banheiro. Sorriu: “Afinal, só me restou você!”. Dirigiu-se ao closet e entre as caixas de sapatos retirou a mais velha, aquela na qual ainda guardava pequenas recordações do passado.

Sentada na cama, abriu a tampa e procurou algo para acomodar aquela mecha. Fazia tempo não mexia ali. Qual não foi a sua surpresa quando, no fundo da caixa, em meio a fitas K-7, fotos embaçadas de máquina “Love”, monóculos, chaveirinhos, cartões dourados de Natal, canetinhas secas, terços infantis, encontrou um pequeno porta-joias e, dentro dele, a aliança, a mesma que há pouco comentara com Virgínia: “Não é possível!” Não se recordava de tê-la guardado, mas ali estava, como uma memória oculta, completamente ignorada por quase trinta anos. Era uma aliança barata, de uma doçura adormecida, escurecida em alguns pontos. Tentou colocar no dedo, mas não cabia. Sorriu novamente: “Nunca fora minha.” Colocou-a de volta no porta-joias, desta vez, ao lado da mecha: “Perfeito.”

Cinco anos depois, Vitória e Virgínia estariam novamente ao centro da mesa de um badalado café da cidade, rodeadas pelas colegas do colégio, relembrando e reinventando histórias que só Deus sabe até onde havia alguma verdade. Mas quer saber? Isso não importava. Elas se divertiam e alegravam a todas, rejuvenescidas, radiantes, a dividir emoções, a cantar ou arriscar passos de dancinhas antigas, até mesmo a chorar pelas suas perdas, mas nunca mais sozinhas. De vez em quando, ouviam: “E o Ramon, hein, namorou as duas! Ele era mesmo um safado...” Vitória e Virgínia se entreolhavam. Quem quisesse, perceberia de pronto naquela troca de olhares um misto de ternura e dor, mas elas logo se voltavam e debochadamente respondiam: “Ele era, sim, um enorme safado!” E aquelas gargalhadas soavam como uma libertação, desapegadas e emocionantes.

Naquele tempo, Vitória não deixou de se comunicar com Jandira. Ligava sempre e, quando possível, a visitava. Tomando chá, conversavam na sala sobre assuntos corriqueiros e femininos. Vitória evitava falar em Ramon, Jandira, curiosamente, mais, embora a chamasse jocosamente de “cunhadinha”. Mas quando Jandira ia à cozinha, era difícil Vitória não dirigir um olhar pesaroso àquele quarto, agora tomado pelas coisas da irmã. E foi nesse período que Jandira descobriu um câncer. Sozinha e com poucos amigos, sem ter carro ou companhia, Vitória a acompanharia às consultas médicas e às terapias. Comprava-lhe medicamentos, fazia o supermercado e a confortava. Porém não tardaria a partida de Jandira, não antes de manifestar diversas vezes a sua gratidão e a felicidade por aquela amizade tão querida, mesmo ao entardecer de sua vida.

Vitória se tornou uma mulher feliz como poucas que conheci. Tinha suas dores, seus medos, seus conflitos, como qualquer ser humano, mas nada disso a abalava. Para os familiares, amigos e colegas sempre tinha bom ouvido, um ombro amigo, além das impagáveis tiradas de espírito. Com a idade, foi se desligando das certezas, não dava tanto espaço para elas, por entender que, ao mesmo tempo que nos oferecem suposta segurança, nos aprisionam. A dúvida, sim, é um ninho sedutor de delícias e possibilidades.

Desde quando visitou pela última vez os pertences do quarto de Ramon, todos os anos, em seu aniversário, Vitória visita o seu jazigo. Senta-se no meio-fio, coloca ao seu lado uma garrafa térmica de café e deita em sua lápide um buquê de lírios azuis, em “amor eterno”, como ele dizia. Sem pressa, conversa com ele. Pede-lhe paciência, pois história tem é muita: “São tantos anos perdidos, né?” Quem vê aquela mulher muito branca ali, pensa tratar-se de uma viúva ou mesmo de uma inconsolável mãe. O que eles não veem, nem poderiam, pois não é do homem o domínio das coisas da vida, do coração e da morte, é o pulsar desperto em contentamento emanado daqueles lírios agora tão azuis quanto o céu que nos veste.

 

FIM