“Lírios Azuis são promessas de amor eterno”, disse
Ramon, oferecendo-os com toda ingênua pompa de adolescente recém-aberto à
possibilidade de morrer de amor, diante de sua amada Vitória, em seu primeiro
aniversário juntos, assim como o faria nos demais, desde que iniciado aquele
romance.
O casal se
conhecera na escola, no ensino médio. Para Ramon, o primeiro encontro de
olhares bastaria para que não mais a perdesse de vista. Diziam os colegas de
sala serem feitos um para o outro, inseparáveis, como todos os grandes
enamorados de novela, condenados a serem felizes para sempre.
Naqueles anos, além
da companhia em carteiras de sala de aula, da saraivada de beijos incessantes e
velados nos fundos da cantina durante o recreio, em pares nas atividades e
festas escolares, enfrentaram muitas noites juntos, fossem debruçados em
apostilas às vésperas de provas, em livros de poesia – pois se permitiam ouvir
a voz de anjos – ou por vezes sobre seus corpos nus, em ebulição, quase
virgens, em plena alfabetização sexual.
Ao final do curso,
ela passou para a Psicologia e ele em Jornalismo. Comemoraram num contentamento
de ganhadores de loteria, farto de planos de futuro: muitos filhos, uma casa no
campo, escreveriam livros, viajariam, teriam uma música, cachorros, gatos,
papagaios e uma velhice extraordinária. Porém, o amor se dá a distrações, e
Vitória conheceria Carlos, um aluno do curso de Engenharia que, ao contrário do
romântico Ramon, não elaborava projetos alucinados, sustentados em longarinas
de sonhos, mas sobre metas, orçamentos e formulentas planilhas. Desde então, os
encontros seriam inexplicavelmente adiados um a um, até quando Ramon soube pelo
colega Nestor – parece que sempre há um em nossas vidas – sobre o suposto
flerte entre Vitória e Carlos.
O seu mundo
quedou-se ali mesmo. Ramon não poderia nem queria crer. Só de pensar, morria.
Ligou para Vitória. Marcariam um encontro. Ela adiou o quanto pôde, lançando
todas as desculpas, as mais esfarrapadas, mas, diante da insistência, cedeu.
Quando Vitória chegou
à praça, Ramon não reconheceu o seu olhar, aquele que o conquistou. Sentiu-se,
desde então, fracassado. Mesmo assim, criou coragem para exaltar o seu amor, o
mais sincero e sem igual no mundo – como todos, aliás. Gesticulava, falava,
falava, falava, com receio do inesperado e até então desconhecido silêncio que
poderia abater-se entre os dois. As lágrimas desciam navalhando o seu rosto...
Porém, percebia que ela, numa frieza beirando a crueldade, de braços cruzados,
evitava olhar para ele. Enquanto tentava convencê-la, ela murmurava,
impaciente, “que sabia de tudo aquilo, que sabia, mas que era outra coisa”. Ela
se repetia, embaraçada, duas, três vezes, maquinalmente: “sabia de tudo aquilo,
mas que era outra coisa”. Sentia-se péssima ali, pronta para correr se
pudesse.
Ramon calou-se.
Assistindo àquele constrangimento e ciente de que dali não sairia mais nada,
sentiu-se ridículo, de uma estupidez medonha. Ora, Vitória era uma manteiga
derretida, chorava até em propaganda de fraldas de bebê, mas não derramara uma
lágrima sequer diante do seu amargo e profundo sofrimento. Será que ele não
merecia uma lagrimazinha de nada depois de tudo que viveram juntos? Não, aquela
era a mais absoluta negação que poderia sofrer. “Pois era só isso”, disse e
tomou o seu rumo sem olhar para trás, sendo-lhe insuportável assisti-la
certamente aliviada e pronta para revelar ao mundo o seu novo amor. Daí, nunca
mais a procuraria, mesmo quando indignado recebeu em uma sacola de papel a
devolução de cartas, poemas, presentes e fotografias. Tudo acabado de uma vez
por todas!
Curiosamente, a
única coisa que nunca mudou foi o envio de buquês de lírios azuis sempre na
data do aniversário dela. Com ele, um cartão oficioso, quase desinteressado:
“Parabéns” e o endereço atualizado de e-mail e telefone. E só!
***
Vinte e cinco anos depois, não parecia ser o seu aniversário
se Vitória não recebesse aqueles lírios azuis e os colocasse no vaso da mesa de
centro da sala, bem ali, diante de Carlos, seu então marido, e da família que crescia.
Do nada, à noite,
na hora da bem frequentada e animada comemoração, não seria estranho se nós a
encontrássemos mergulhada no sofá, os pequenos pés na mesinha de centro,
bebendo uma taça de vinho, sorrindo sozinha, com o pensamento distante e os olhos
voltados para os lírios, alheia à zoada de Carlos, a trocar velhas e grosseiras
piadas com seus amigos já alegremente bêbados, tirando troça com as suas
esposas, boa parte delas, assim como de seus filhos, espalhada nos cômodos do
apartamento ou em fuga nos celulares, videogames ou na TV.
Ao final da festa,
no silêncio mais perigoso da noite, saía preguiçosamente a colher as taças e os
pratos esquecidos na varanda e na sala. Ao cruzar pelos lírios, chegava-lhe,
como um sussurro: “Ele ainda pensa em mim.”
No entanto, jamais
ligou para Ramon. Não enviava e-mails nem mensagens de mais simples
agradecimento. Se quisesse, ele procurasse por ela. Não se esquecia de seu
aniversário, de enviar aqueles lírios, por que não ligava? Tanto tempo se
passou desde a última vez que se falaram... Não poderiam ser amigos? E assim, a
vida tomava o seu rumo. Na verdade, ela, imersa nas atividades profissionais,
nos cuidados com os filhos, com o marido e com a mãe viúva, nunca se lembrava
de Ramon, até a chegada daqueles lírios azuis.
Nos frequentes
encontros com as amigas da escola, em divertidos momentos de revelações
constrangedoras e lembranças batidas do passado, vez ou outra alguém perguntava
por ele e, espontaneamente, todas olhavam para ela, esperando alguma novidade
que nunca veio.
Contudo, chegou
mais um esperado dia de seu aniversário... e nada dos lírios! Vitória
estranhou. Não podia ouvir tocar o interfone que logo pensava: “São eles!” Mas
não eram. Ligou à portaria. Perguntou se deixaram algo para ela, e avisou que
não sairia de casa, caso chegassem.
Ansiosa, parou em
frente ao espelho do banheiro. Incomodou-a as raízes brancas dos cabelos, as
rugas em torno dos olhos tristes ao simular um sorriso desmotivado, a falta de
um pulsar que embaraçasse o coração. Estava velha? Acabou, é isso? Nunca mais?
O marido, ao
contrário, chegava entusiasmado, trazendo cerveja e carne para churrasco,
fazendo algazarra com os filhos. Era também dia de jogo e havia chamado os
amigos. Vitória respondeu com uma imediata dor de cabeça. Fechou as cortinas do
quarto e colocou o lençol no rosto para esconder o sofrimento que lhe escorria
na face.
Foi aquele o
aniversário mais deprimente de sua vida. Os amigos estranharam: “Ela tá
doente?” Carlos não notou: “Está? Não sei.”
No sofá, fingia a duras
penas ouvir as amigas sobre a nova série daquele “homem liiindooo”. Evitava
olhar para a mesinha de centro, desnuda e profundamente triste, a suportar no
peito a dor do misterioso abandono.
No dia seguinte,
dormira mal, ficou em casa. Inconformada, decidiu ligar para ele, mesmo
faltando-lhe o ar e a coragem: “Alô, Ramon?” Porém, do outro lado da linha, uma
mulher: “Pois não, aqui é Jandira.”
Que maçada! Claro,
ele poderia ter outra pessoa, sabia lá, uma esposa, namorada... Jandira
continuou: “Mas esse telefone é mesmo do Ramon. Quem deseja falar com ele?”
“Uma amiga”, respondeu. A voz do outro lado da linha alteou: “Ah, você é a
mulher dos lírios?”
Em pânico, Vitória
desligou o telefone e caiu, quase desmaiada, no sofá: “Que burra!”.
O telefone tocou. Era
Jandira. Mesmo assustada, Vitória segurou a respiração e o atendeu, afinal, não
devia nada a ninguém. A mulher foi direta ao assunto: “Eu sou a irmã dele.
Ramon está morto.”
***
Vitória batia à porta de Jandira logo na manhã seguinte à súbita conversa telefônica
na qual revelava: “o coração de Ramon parou pela segunda e última vez”.
Conforme a lacônica irmã, a primeira fora quando se sentira rejeitado pela
mulher amada: “Depois daquele dia, nunca mais foi o mesmo. Acabou-se, fechou-se
para o mundo e para a vida.”
Surpresa, Jandira
abriu a porta para Vitória. No entanto, entre a hesitação de convidá-la ou não,
a assistiu entrar ligeiro na sala, pelo visto trazendo o mesmo peso de silêncio
na alma. Não a ofereceu nada, nenhuma gentileza ou cordialidade. Vitória parecia
abalada, como se procurasse algo que perdera e que, apesar do tempo, nunca dera
conta. Sentou-se no sofá e pediu desculpas por não a ter reconhecido por nome
durante a ligação. Claro, era a irmã de Ramon. Não a conhecera pessoalmente,
mas o namorado falava muito dela, pois sendo eles órfãos, Jandira era o que ele
tinha, não apenas como família, mas como mãe. Jandira sentou-se na cadeira de
balanço ao lado de um antigo aparelho de TV. Sentia alfinetar os olhos,
disfarçou o tremor do queixo, mas não chorou: “É verdade, eu era ‘irmãe’
dele... do Ramon. Pobre menino, se deixou levar.”
Vitória, com um
incômodo sorriso de canto de boca e o olhar perdido no além, ajeitou os óculos
e pôs-se, carinhosamente, a falar dele, do adolescente que ele foi, coisas das
quais conhecera bastante e compartilhara com ele mais do que com qualquer outra
pessoa. E, naquele instante, estranhava ela própria ainda lembrar de tudo
aquilo com tantos detalhes. Entre essas lembranças, não diria nunca, mas estava
aquela casa. Só fora ali uma única vez, a namorar, justamente aproveitando a
ausência de Jandira.
A irmã ouvia tudo
aquilo em um misto de indignação e de saudade. Uma vontade de mandá-la à rua.
Ao mesmo tempo, de trancá-la e guardar para sempre aquelas memórias tão
queridas. Suspirou e, de repente, ergueu-se: “Quer conhecer o quarto dele? Está
como ele deixou. Não tive coragem de...” Engoliu a voz, espremendo toda sua dor
no rosto vermelhecido.
Vitória levantou-se
assombrada. De certa forma, achava quase um sacrilégio entrar no quarto do
ex-namorado, mas a curiosidade aliada àquela tensão a conduziu.
Seu coração batia
forte ao entrar no quarto úmido, escuro e abafado. Impossível não ser
contaminada pela melancolia ali apresada. Jandira abriu a janela e saiu.
Vitória, sem ter a
certeza de que deveria ou queria estar ali, passou um tempo em pé, quase
imóvel, segurando com as duas mãos a alça da bolsa encostada nos joelhos. Após
uma breve panorâmica, caminhou lentamente pelo quarto de piso em tacos, a
começar pela mesa de trabalho onde encontrou em um velho porta-retrato – um
presente dela – uma foto do casal. Ela sorriu. Pareciam tão felizes, tão
lindos. Largou a bolsa no chão e, involuntariamente, trouxe com as duas mãos o
retrato ao peito, enquanto na sua memória despontavam vozes, promessas e risos,
muitos risos. Sim, estavam felizes. Se amavam. E pela primeira vez em tantos
anos verteu uma lágrima, talvez não por ele, mas por ela, por aquela felicidade
pintada no retrato, apenas nele, não a reconhecendo mais. Mantendo-o ao peito
com uma das mãos, passou a vasculhar em torno com a outra. Livros, revistas,
canetas, uma antiga máquina de escrever, o notebook e, preso a um clipe, uma
outra foto. Desta vez, não é ela, mas outra: “É Virgínia.”
“Virgínia e
Vitória”, desde a escola apelidadas de “as gêmeas” devido à semelhança física e
a amizade “grudenta” entre elas. Não havia segredos. Viajavam juntas. Dormiam
uma na casa da outra e, durante um tempo, até usavam roupas iguais. As melhores
amigas, até o surgimento de Ramon, já no ensino médio. O namoro deles,
naturalmente, as afastou. Pensava nisso ao olhar aquela desconhecida foto,
quando Jandira entrou no quarto: “Você se lembra dessa moça?” “Sim, claro, é...
era minha amiga”. Jandira deitou, lenta e pensativa, uma bandeja com uma xícara
de café sobre a mesa e, com um tom enrouquecido, revelou: “Ela namorou ele
quando você... você sabe.”
***
Durante os próximos dias, a cena se repetiria. Geralmente à tarde, após o
almoço, nas saídas do trabalho para resolver questões pessoais: Vitória batia à
porta e mal Jandira a abria, adentrava. Esta, mesmo incomodada com a frequente
e absurda visita, nada dizia, apenas meneava a cabeça ao vê-la sem cerimônia
trancar-se no quarto do irmão.
Deitando a bolsa na cadeira, Vitória
iniciava ali mais uma exploração de reconhecimento. Folheava e lia os livros da
estante, recados em post-its, diários avulsos nas gavetas e os poucos álbuns de
fotografias. O que buscava, não sabia ao certo, mas há dias uma excitação não a
permitia trabalhar nem dormir. Por vezes, à noite, o marido, ao chegar ao seu
quarto, a encontrava chorosa, distante. Discreto, pegava o travesseiro e um
lençol: “Vou dormir na sala, amor. Está quente aqui.” Jamais passaria por sua
cabeça que a esposa sofria de uma angústia obstinada de recordar e encontrar-se
com outro homem.
Vitória ousou ligar a vitrola e deixou tocar o
compacto pousado no prato: “You know that it would be untrue/You know that I
would be a liar…” Entrou
no banheiro, evitando olhar-se no espelho. Abriu o armário: ansiolíticos,
antidepressivos, analgésicos. Sobre a pia, uma escova de cabelo. Pegou-a
lentamente. Havia alguns fios nela: “Ramon!” A menção, a meia-voz, daquele nome
ali ecoou, deixando-a trêmula, arrepiada, largando involuntariamente a escova.
Passado o súbito mal-estar, pegou-a do chão e dela colheu aqueles fios de
cabelo: “Grisalhos... estavam grisalhos.” Sentou-se no vaso e passou a
observar, entre as polpas dos dedos, aquele achado. Apropriava-se da sua
textura e tentava, fechando os olhos, cheirando-os e passando-os delicadamente
pelo rosto, sentir a sua presença. Lembrava: escorria os seus dedos pelos
cabelos do namorado, em carícias lentas, enquanto ele, alegre, contava
histórias. Encantada, ela estenderia seus lábios àquele sorriso: “Era tão
lindo.” Levantou-se. Correu para a sua bolsa, de onde tirou o estojinho do
espelho e lá os guardou com o cuidado e a hesitação de quem rouba.
No guarda-roupa, em
cuja porta se liam os versos “Todo grande amor só é bem grande se for triste”,
encontrou, envolvidos em saco de papel, as cartas e fotos, entre outras coisas
que havia devolvido a ele há mais de vinte e cinco anos, assim como as suas
também. Com a poeira, vinha uma série de sentimentos de uma outra Vitória já
esquecida, exceto por ele: medo, tristeza, incerteza e remorso.
Anoitecia. No
entanto, decidiu ler aquelas cartas. Surpreendeu-a tamanha ingenuidade e
inocência. Ali estava uma garota inexperiente, sonhadora – era canceriana –,
sentindo-se a mulher mais amada do mundo, apaixonada por um rapaz tão tolo,
outra criança, talvez mais do que ela. Dois espíritos que se perderam ao viver
um amor que, hoje, ela cria não existir. Mas se esse amor era uma mentira, o
que é que estava presenciando ali? O que era tudo aquilo? “Vitória, eu a amo
tanto, mais do que tudo, mas do que a mim mesmo.” Passava de uma carta para a
outra com o coração apertado de doer. Era uma tragédia. Um amor mórbido a
arrancar a vontade de viver de Ramon, compensando a ausência dela com a mais
pura saudade.
Olhou para a cama
dele, no centro do quarto, descalçou os sapatos e entregou-se a ela – evitava-a
–, aos soluços, agarrando o travesseiro contra as pálpebras umedecidas, e, em
instante irrefletido, numa franqueza quase infantil, pedia-lhe perdão.
O quarto escuro
recendia ruína. Sobre o corpo de bruços, então indefeso e adormecido, via-se
pairar por inteiro uma inusitada sombra, como se a resguardá-lo gentilmente das
dores irreparáveis de um passado morto, porém reaceso de paixão.
***
Desde que Jandira anunciou a ela o inesperado namoro entre Ramon e
Virgínia, Vitória se pôs a investigar o paradeiro daquela que fora a sua melhor
amiga e companheira dos tempos de infância e adolescência no colégio.
Nas reuniões anuais
entre as colegas daquela instituição de formação católica – elas, às vezes, nem
tanto –, a ausência da divertida Virgínia era notada, contudo, havia logo um
breve silêncio seguido por uma mudança drástica de assunto. A própria Vitória
perguntara diversas vezes por “aquela danada”, mas ninguém a respondia... e
agora ela imaginava o porquê.
Conseguiu, com
muita insistência, o seu número de telefone. Ligou. Para Virgínia foi uma
surpresa atroz: Vitória a convidava para um encontro. Precisavam conversar.
Após a primeira ligação, quase maquinal, veio a segunda, a terceira, já com
sinais de irritação, depois a derradeira, até finalmente convencê-la.
Era uma tarde de
domingo. Após a habitual missa, Vitória a encontrou em um banco de uma
significativa praça do passado, embaixo de uma árvore que um dia chamaram de
“nossa”. Embora não tivesse certeza do rumo que aquela conversa tomaria,
determinada, Vitória estava tranquila, ao contrário de Virgínia, absolutamente
incomodada.
Vitória foi
objetiva. Com a fala pausada, contou como soube da morte de Ramon, do seu
encontro com Jandira, e de um suposto namoro entre Ramon e Virgínia: “Você
nunca me disse nada. Não me procurou. Nós éramos amigas. Por quê?”
Abalada e com uma
expressão emotiva, Virgínia, a princípio, relutou a externar toda aquela
memória doída e traumática, porém, talvez por ainda guardar em seu íntimo
alguma centelha daquela amizade antiga, aos poucos deixou transbordar tudo
aquilo que a machucava há tantos anos, coisas a que ela atribuía a sua atual
infelicidade e a sequência de pesadelos de sua existência. Para ela, Vitória
foi uma sombra que a perseguiu em tudo. Ela era a causa de tudo. Sim, ao
conhecer Ramon, egoísta, abandonou a amizade e desprezou, sem explicação, a sua
presença. Ela, Virgínia, assistiu ignorada àquele amor que ela não tinha nem
teria pelo mesmo homem: “Como a mim, você também o rejeitou. Éramos, nós dois,
os usados e excluídos da sua vida à sua conveniência. Aproximei-me dele.
Entendia o que sentia. Tentei confortá-lo. Ele quis namorar e eu me entreguei,
pensando ser possível fazê-lo tão feliz quanto ele era com você. Não consegui.”
Suspirou profundamente. Conteve a dor daquele insuportável fracasso e
continuou: “Ele, nem sei se tinha consciência disso, me chamava por seu nome,
perguntava-me de você, queria saber histórias suas. Insistia em sabê-las, mesmo
quando eu não as queria contar. Ah, que eu achava doentia essa fixação dele,
mas, com pouco, percebi ser ainda mais doentio eu me render a isso, fazer esse
papel de sua dublê. ‘Gêmeas’... era assim que nos chamavam na escola, não
era?”. Meneou a cabeça, baixando a testa por sobre o punho: “Por quê? Deus, eu
queria que desse certo, pois eu o amei... Mas ele não. Ele sempre a amou. Só a
você. Mesmo depois de tudo... Ah, que ódio eu sentia de você, Vi. Quis que
morresse, nos deixasse em paz! Pensava: o que essa mulher tem nessa boca que o
enfeitiçou assim? Você é uma bruxa... Lembra? Eu sempre disse que você era uma
bruxa.”
“Me beija.”, disse
Vitória subitamente. Pasma, Virgínia perguntou se ela estava maluca. “Anda, me
beija. Você não quer saber como eu enfeitiço as pessoas? Me Beija. Ou não tem
coragem?” Desafiada, Virgínia tomou seu rosto entre as mãos e a beijou. Um beijo
de almas, repleto de mágoas, mas também de saudades. Dois corações frágeis, ali
irmanados em incertezas e conflitos profundos. Depois, olhando firme nos olhos
tristes da outra, Virgínia manifestou um primeiro e ainda tímido sorriso: “Não,
não é lá essas coisas... Eca!” E esfregou a manga da blusa nos lábios,
estendendo uma gargalhada represada na juventude, compartilhada com Vitória,
naquele momento, com os olhos cheios d’água.
Como meninas,
abraçaram-se e falaram por horas, sem parar. Vinham-lhes lembranças, dores,
angústias, mas também as alegrias e descobertas de uma vida inteira.
Anoitecia e ainda
podia-se ver aquelas mulheres de mãos dadas no banco de praça, envolvidas num
halo de emoção, quando, em um instante, Vitória beijou o dorso da mão da amiga,
suspirou e a revelou: “Ele... Ramon... me pediu em casamento.”
***
“Aconteceu durante a festa de
formatura da
escola”, descreveu Vitória à amiga. “Enquanto todos estávamos muito felizes,
mesmo diante da tensão de um Vestibular, Ramon, naquela noite, eu sentia,
estava demasiadamente eufórico. Mas ele era bem assim mesmo, pensei... Quando
deram início à dança dos formandos, ele me abraçou e dançamos. Creio que ambos
aguardávamos muito aquele momento. Senti o mundo desaparecer à nossa volta,
assim como o chão de nossos pés. Ainda consigo lembrar-me da música [“A Whiter
Shade of Pale”], da sensação de ter o seu coração pulsando acelerado tão ao
lado do meu. Nossos dedos entrelaçados, o seu perfume de sempre e o olhar dele
posto em mim. Acho que essa é uma das coisas que mais me impressionavam e que
eu amava nele: o olhar. Eu tinha a impressão de que ninguém me via como ele.
Para ele, eu era realmente importante. Ele me fazia acreditar nisso: eu era
importante.” Silenciou como se a mergulhar naquela lembrança: “De repente, ele
me tirou do salão. No jardim, abraçou-me e nos beijamos. Então, tirou do bolso
do paletó uma caixa. Era, claro, uma aliança. Ali, tremendo e com aquele
sorrisão no rosto, me pedia em casamento. Vê se pode? Ele querendo enfiá-la em
meu dedo e eu dizendo que não era assim. Não havíamos conversado, não podíamos
assumir aquilo. Éramos jovens demais... ‘Minha família não vai aceitar’, eu
disse, e ele, como se decide ir à esquina, sugeriu: ‘Nós fugimos!’. ‘Você quer
matar a minha mãe?’ Sim, eu sei, foi bem infantil, mas nós éramos assim mesmo:
crianças. Disse que iria pensar... mas eu não queria pensar. Não, não. Estava
apavorada! Depois, durante as provas do Vestibular e no início de curso na
faculdade, consegui adiar esse papo. Vez por outra ele insistia, cobrava-me uma
decisão e, diante de sua falta, alegava eu não ter certeza de amá-lo. No
entanto, certeza mesmo eu tinha de querer me formar, concentrar-me na profissão
escolhida, ganhar o meu dinheiro, viajar, conhecer pessoas, tantas coisas... Já
Ramon queria casar logo e ter filhos. Moraríamos com a irmã dele no início,
arranjaria um trabalho qualquer enquanto concluía o seu curso... Eu não queria
nada disso. Foi quando conheci o Carlos. Como eu, estagiava na área, já reunia
economias, queria abraçar a futura profissão, curtia a vida e namorava sem
gerar expectativas. Acho que isso me atraiu. Não aguentava mais aquela pressão
do Ramon. Tinha que acabar com aquilo, mesmo que me doesse e o machucasse.
Pensava: ‘Se tiver que ser, um dia nos encontraremos novamente’, o que sabemos,
nunca aconteceu”.
Virgínia ouvira toda a história.
Levantou-se e, em despedida, abraçou a outra: “Vi, eu não conheci esse Ramon. O
homem que esteve comigo era infeliz, desesperançado, a ponto de sua tristeza
não caber nele. Pior: tinha de sobra para distribuir a quem tivesse coragem de
estar ao seu lado... como eu. Ele era incapaz de enxergar qualquer futuro.
Vivia apenas para remoer o passado, pois era lá, somente lá, onde ele poderia
encontrar você.”
Assim, impossível seria dormir naquela
noite. No dia seguinte, como em outros antes, bateria à porta da casa de Ramon
para mais uma excursão silenciosa ao seu encontro.
Jandira demorou mais do que o de
costume para atendê-la. Sua fisionomia também não era das melhores. Acostumada,
Vitória entrou e, quando abriu a porta, estarreceu: o quarto estava
completamente vazio! Voltou-se para a sala e ouviu de Jandira: “Eu tinha que
acabar com isso. É muito louco, é imoral. Você tem que deixá-lo descansar. Ele
está morto, criatura... morto! É tarde demais para ele... mas para você...
Esqueça. Pelo amor de Deus, esqueça.”
***
Vitória quedou-se no piso do quarto de Ramon durante um
bom tempo a chorar.
Jandira havia vendido, doado e até
queimado o que restara de lembranças do irmão. Vitória não imaginava o quanto
as suas idas àquela casa a perturbava. Entretanto, estava certa: tinha que parar.
Ergueu-se, despediu-se de Jandira e, arruinada, voltou para casa.
Aproveitando o silêncio do apartamento,
tirou da bolsa o seu estojo de pintura e colheu de lá a mecha grisalha arrebatada
do seu banheiro. Sorriu: “Afinal, só me restou você!”. Dirigiu-se ao closet e
entre as caixas de sapatos retirou a mais velha, aquela na qual ainda guardava pequenas
recordações do passado.
Sentada na cama, abriu a tampa e
procurou algo para acomodar aquela mecha. Fazia tempo não mexia ali. Qual não
foi a sua surpresa quando, no fundo da caixa, em meio a fitas K-7, fotos
embaçadas de máquina “Love”, monóculos, chaveirinhos, cartões dourados de
Natal, canetinhas secas, terços infantis, encontrou um pequeno porta-joias e,
dentro dele, a aliança, a mesma que há pouco comentara com Virgínia: “Não é
possível!” Não se recordava de tê-la guardado, mas ali estava, como uma memória
oculta, completamente ignorada por quase trinta anos. Era uma aliança barata,
de uma doçura adormecida, escurecida em alguns pontos. Tentou colocar no dedo,
mas não cabia. Sorriu novamente: “Nunca fora minha.” Colocou-a de volta no porta-joias,
desta vez, ao lado da mecha: “Perfeito.”
Cinco anos depois, Vitória e Virgínia
estariam novamente ao centro da mesa de um badalado café da cidade, rodeadas
pelas colegas do colégio, relembrando e reinventando histórias que só Deus sabe
até onde havia alguma verdade. Mas quer saber? Isso não importava. Elas se
divertiam e alegravam a todas, rejuvenescidas, radiantes, a dividir emoções, a
cantar ou arriscar passos de dancinhas antigas, até mesmo a chorar pelas suas
perdas, mas nunca mais sozinhas. De vez em quando, ouviam: “E o Ramon, hein,
namorou as duas! Ele era mesmo um safado...” Vitória e Virgínia se
entreolhavam. Quem quisesse, perceberia de pronto naquela troca de olhares um
misto de ternura e dor, mas elas logo se voltavam e debochadamente respondiam:
“Ele era, sim, um enorme safado!” E aquelas gargalhadas soavam como uma
libertação, desapegadas e emocionantes.
Naquele tempo, Vitória não deixou de se
comunicar com Jandira. Ligava sempre e, quando possível, a visitava. Tomando
chá, conversavam na sala sobre assuntos corriqueiros e femininos. Vitória
evitava falar em Ramon, Jandira, curiosamente, mais, embora a chamasse
jocosamente de “cunhadinha”. Mas quando Jandira ia à cozinha, era difícil Vitória
não dirigir um olhar pesaroso àquele quarto, agora tomado pelas coisas da irmã.
E foi nesse período que Jandira descobriu um câncer. Sozinha e com poucos
amigos, sem ter carro ou companhia, Vitória a acompanharia às consultas médicas
e às terapias. Comprava-lhe medicamentos, fazia o supermercado e a confortava.
Porém não tardaria a partida de Jandira, não antes de manifestar diversas vezes
a sua gratidão e a felicidade por aquela amizade tão querida, mesmo ao
entardecer de sua vida.
Vitória se tornou uma mulher feliz como
poucas que conheci. Tinha suas dores, seus medos, seus conflitos, como qualquer
ser humano, mas nada disso a abalava. Para os familiares, amigos e colegas
sempre tinha bom ouvido, um ombro amigo, além das impagáveis tiradas de
espírito. Com a idade, foi se desligando das certezas, não dava tanto espaço
para elas, por entender que, ao mesmo tempo que nos oferecem suposta segurança,
nos aprisionam. A dúvida, sim, é um ninho sedutor de delícias e possibilidades.
Desde quando visitou pela última vez os
pertences do quarto de Ramon, todos os anos, em seu aniversário, Vitória visita
o seu jazigo. Senta-se no meio-fio, coloca ao seu lado uma garrafa térmica de
café e deita em sua lápide um buquê de lírios azuis, em “amor eterno”, como ele
dizia. Sem pressa, conversa com ele. Pede-lhe paciência, pois história tem é muita:
“São tantos anos perdidos, né?” Quem vê aquela mulher muito branca ali, pensa
tratar-se de uma viúva ou mesmo de uma inconsolável mãe. O que eles não veem,
nem poderiam, pois não é do homem o domínio das coisas da vida, do coração e da
morte, é o pulsar desperto em contentamento emanado daqueles lírios agora tão
azuis quanto o céu que nos veste.
FIM
Prezado Raymundo Netto
ResponderExcluirAcabei de ler, agora, do início ao final, a intrigante história da busca obsessiva de Vitória por um amor que se construiu fora do tempo regular, em memórias costuradas com detalhes e imaginação. Parabéns!
Malvinier, agradeço demais a sua leitura e gentil retorno de leitora atenta e crítica. Não esperaria de você algo diferente. Muuuito obrigado. Abração.
ExcluirReli os capítulos todos. Como eu poderia deixar de reler os capítulos que tanto me emocionaram,?Desculpa
ResponderExcluirAgradeço pela sua leitura e, se o(a) emocionou, melhor ainda (lamento que eu não saiba quem você é, "anônimo(a)".
ResponderExcluir