Crônica
publicada originalmente no jornal O POVO em 4.11.2009
Fortaleza, cidade-sede, 2070.
Abaixo do plúmbeo céu, o trânsito disputado por carros e pessoas declina da
tradicional buraqueira nas ruas capeadas por betume artificial feito do
chorumento do lixo.
Seguindo
as avenidas, os OutWindows, imensas telas de diodos orgânicos com
imagens tridimensionais anunciam automóveis, dentifrícios, sapatos femininos e
lojas da moda.
Condomínios
de apartamentos de 45m2, sob redomas de refrigeração e purificadores
de ar, encerram centenas de pequenas famílias – o controle da natalidade é
rigoroso. Na sala, nos quartos, no banheiro, monitores com programação pay-per-view simulam
janelas postas em paredes de espelhos. Nas áreas públicas: playgrounds, lan
houses, quadras, lojas de conveniências, decks e muita
grama artificial. Por todos os lados, câmeras, cercas elétricas e alarmes
sonoros que causam, pela cidade, sobressaltos a todo instante.
As
pessoas quase não saem mais de suas casas – muitas trabalham nela: sistema home-office. O inesperado não existe – pensam!
Tudo é planejado e previsível. A vida e a morte. Aliás, a eutanásia, como o
aborto, a pena de morte e o uso da maconha são legais. Sonegar, porém, ainda é
ilegal e continuam sonegando. Os cemitérios foram extintos. Cremar é
obrigatório. Não se discute mais sobre gênero: ser homem ou mulher não faz
diferença. Todos são potencialmente híbridos.
Em
torno da cidade-sede, as satélites — aglomerado de favelas e fracassados
conjuntos habitacionais — se disseminam e crescem a cada dia, fomentadas pelo
abismo gerado pela exclusão tecnológica e mercantil, fervendo em miséria,
doença, violência e rancor, desejosas do inevitável dia em que, juntas e
cansadas de privações, tomarão a sede de inocentes burguesinhos, consumistas
inúteis, mantenedores do sistema selvagem de capital.
Nos
transportes coletivos, a maioria com andar superior, as pessoas dormem, ouvem
música, leem mensagens em seus clocks-mails – relógios especiais em sistema de rede wireless.
O celular foi abolido — descobriram que predispunha aneurismas e acidente
vascular cerebrais — usando-se, então, fones com discagem vocal.
As
cidades do interior, por ausência de políticas contínuas que evitassem o êxodo
de seus jovens à capital, foram esvaziadas e arrematadas a preço de nada por
igrejas que passaram a comprá-las e a construírem pequenas promessas de
“paraísos”. Nelas, as autoridades, todas elas, são pastores, eleitos por
“inspiração divina”. Os reverendíssimos mantêm, por meio de legislações
intermináveis, a cidade “higienizada” — e o grande comércio local — sobre o
jugo da tirania celestial, censura dos meios de comunicação, impostos – físicos
e espirituais – altíssimos e uma harmonia exclusiva e dogmática.
Quase
todas as faculdades aderiram ao ensino a distância. Em algumas, como a da
Filosofia Livre Pensar — que há anos tenta obter aprovação do Ministério
Federativo de Educação —, seus alunos, alcunhados de "espantalhos" e
coordenados pelo prof. Aquino, ainda resistem em aulas presenciais nas quadras,
praças e vielas das cidades-satélites.
Nas
farmácias, ambulatórios coloridos destinados aos portadores das pandêmicas
síndrome do pânico, TOC e depressão disponibilizam kits-coktails reequilibrantes
e fornecem óculos especiais Dreams’Pixels de projeção de imagens
e som, “bengalas” endorfinomiméticas.
Os
carros à eletricidade fracassaram e abriram espaço para os movidos por etanol
celulósico e à água dessalinizada, nos quais, de seus escapamentos, flui um
vapor branco que deixa no corpo dos transeuntes certa sensação grudenta de
maresia.
Pneu.
Droga, nada substituiu o pneu!
Na
paisagem, shoppings de resinas poliméricas e aço de usinagem facilitada tomaram
dimensão de bairros. O Cocoh é o maior deles, homenagem ao rio
completamente aterrado num passado – o antigo shopping do local foi demolido
após a inesperada falência do grupo. O segundo, o Trilha das Garças,
no Lagamar, que dizia promover a conservação ecológica, foi construído sobre o
rio onde as alvas pernaltas, agora extintas, e os pescadores se encontravam.
Os
grande fóruns e casas legislativas, parceiros fiéis dos poderes dominantes,
para reduzirem o caótico tráfego aéreo e assegurar a distância do povo,
mudaram-se de vez para BrasILHA, onde atuam, quando o fazem, por protegidas e
impessoais vias e plenárias eletrônicas.
Hospitais
públicos – assim como as escolas e a segurança – só existem nas
cidades-satélites. Na Sede, as cooperativas de médicos aliadas aos grandes
laboratórios farmacêuticos monopolizaram a atenção — inclusive a financeira —
da saúde. As doenças, misteriosamente, só aumentam!
Depois
que conseguiram vender o Cine São Luiz aos neopentecostais, abrasadas foram as
línguas de fogo que consumiram o resto do centro da cidade. Nada mais ficou em
pé. Suas ruínas marginais fazem parte de um sítio arqueológico conservado para
pesquisas universitárias que não servem para nada, assim como a plataforma do Lattes, detonada num bug irreversível. Também estão
esquecidas as ruínas de antigos resorts e de parques
aquáticos, simulações de um Caribe commodus vivendi metido a
besta que expulsou a população nativa, evadiu divisas e descaracterizou para
sempre a paisagem natural.
Na
praça dos Leões, a estátua da Rachel de Queiroz continua sem óculos e sem
cabeça, sendo agora acompanhada da estátua de uma jornalista da cidade que, ao
contrário dos demais, conquistou a sua cadeira na Academia Cearense de Letras
apenas após a sua morte. Aliás, a Academia, por não conseguir mais o vantajoso
ingresso de políticos, juízes ou demais que intermediassem por recursos de
subsistência, fechou as portas. Decadentes, outras dezenas de academias foram
esvaziadas. Apenas uma resiste — com sede no coreto, mictório improvisado, da
praça dos Leões — tendo como único representante e líder, o Lima Freitas,
atualmente com mais de 130 anos. Vez ou outra o velho poeta, com seu surrado
fardão, sai bengalando os ambulantes perdidos da praça, acusando-os de
macularem aquelas calçadas com suas desprestigiosas presenças, tal qual um
Jesus nos templos, gritando: "Academus! Academus!"
Na
praça Poeta Mário Gomes, antiga do Ferreira, brincadeira de um prefeito, a Coluna
da Hora sucateada não resistiu ao tempo. Do cacimbão, afloram entulhos do velho
comércio e ossadas de jumentos.
Diante
da escassez planetária de árvores, a Livraria
— existe apenas uma rede, a BookMegaStore — vende livros
impressos tão somente em forma de edições de luxo e em pequeníssimas tiragens
destinadas a abastados colecionadores de arte. Os demais fazem download, por meio de assinaturas, para
leitores óticos — curiosamente, os preços nunca diminuem e os autores continuam
sem ter a certeza do que vendem — ou os adquirem em forma da mídia Blu-Ray MONDO, versão bisneta do CD/DVD.
Mesmo com todas as restrições, comercializam-se Pirate Books. Hoje,
a Livraria lançará a coleção Obra Completa de uma autora cearense que residia em Aquiraz,
anunciando, como bônus, hologramas seus em circuitos de entrevistas, enquanto
outra, agora, romancista, bastante idosa, recebe um prêmio na África em
reconhecimento pela obra.
José
de Alencar é considerado, então, o mais revolucionário escritor brasileiro,
seguido por seu discípulo e amigo Machado de Assis. Livros impressos também são
encontrados na nova Biblioteca Pública — a antiga foi demolida para dar espaço
ao Centro Cultural Dragão do Mar, parcialmente arrasado pelo avanço das águas
que deixou submersos o prédio da Alfândega, a Ponte Metálica e o Acquário. Com pouquíssimos visitantes
presenciais, a Biblioteca funciona com o Arquivo Público e mantém um amplo
serviço de pesquisa e empréstimo on-line, por meio de cientistas da
informação — os dantes bibliotecários.
Na
Universidade Federal, ao lado do antigo bosque Moreira Campos, uma herma em
bronze de um antigo professor anuncia “O último crítico e historiador literário
do Ceará, cujo maior pecado foi não ter deixado substitutos”.
Há
alguns anos, por não se ter mais o que falar de novo sobre os grandes nomes da
literatura nacional, os alunos do curso de Engenharia Linguística e de Artes,
antigo curso de Letras, se viram obrigados a estudar os esquecidos autores
cearenses, descobrindo na pesquisa de microfilmes de jornais dos séculos XX e
XXI que pouco se falava deles, e que, menos ainda — raras as exceções em flashs de
colunas sociais cheirando a uísque — se tem registro de sua existência e de sua
obra.
Rafael,
atual estudante do curso, fora “sorteado” em classe com o nome deste autor que
vos fala por meio dessas folhas d’O POVO (“Que droga... pode ser outro, não?”).
Dirigiu-se à Midioteca — intitulada
com o nome de um contista tamborilense devido à generosa doação, pela viúva, de
seu acervo bibliográfico particular — e, em meio às crônicas delongadas, como esta
que agora leem, encontrou o seu obituário:
—
Caramba! E esse coitado morreu assim?
Esse
texto encontra-se enfeixado na obra Crônicas
Absurdas de Segunda, de Raymundo Netto, finalista do Prêmio Jabuti em 2016.
Gostei da crônica da Fortaleza cidade-sede, 2070, que só agora li. E a vejo mais do que como uma claridade premonitória, um inventário com sabor futurista, como parte do caráter da Fortaleza nossa, do tempo que antes e ora vivemos. A crônica se adianta ao tempo, dando forma a coisas que se esboçavam há umas duas décadas, pouco mais, mas em se tratando de Fortaleza tudo o que de mais atópico, de mais autofágico, de antihistórico da pósmodernidade, como em nenhuma outra cidade brasileira, aconteceria à Fortaleza, dos ricos e dos pobres. É a isso que o autor, como vejo, nessa crônica, magistralmente, dá corpo e voz - enquanto nos tira mais o chão. As Crônicas absurdas de Segunda, entre atos dissolventes insistem e persistem, grande loteria. Aproveito para dizer ao Raymundo Netto que o seu site anda bem animado.
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