“Como é que eu não
te amo, seu, seu, seu...
ABESTADO!”
Enfurecida,
ela só faltava arrancar os miolos de cabelos todas as vezes que ele, no calor de
qualquer ruído sentimental, concluía, pesaroso: “É por que você não me ama
mais...”
Para uma
mulher apaixonada, não existe nada mais abominável do que negar a ela o
reconhecimento desse exercício sobre-humano de amar. Então, desconcertada, mudaria
completamente o rumo e o tom da conversa, tentando, a todo custo, provar a ele a
magnitude de seu amor, o que parecia não ser pouco nem fácil.
Eles se
conheceram como enredo de novela. Nem um nem o outro imaginaria que dali lograsse
sequer amizade. Ao contrário, desde então, criariam maneiras de mudar seus caminhos para se
encontrar em suas solidões, desesperanças, afinando-se em seus insucessos e
frustrações, de maneira que certo mesmo era tudo dar errado, desde o início. Indiferentes
a essa paradoxal e desastrosa constatação, amavam-se.
Logo os
amigos passaram a sentir a falta dela, mas sabiam: “Se desapareceu, está de
caso novo...” Até que, uma noite, ela os encontrou em um bar de karaokê. Ao invés
de sua carnavalesca alegria, trazia olheiras impiedosas, testemunhas de uma dor.
Queria beber não uma, nem duas, mas todas, para esquecer e afogar o remorso.
Os amigos,
lá pelas tantas, sentenciavam: “Você está doida. O que viu nele? Velho, feio,
desajeitado, sem graça. Chato que dói. Sozinha estava melhor, sabia?”
Suspirava, buscava
forças do fundo do poço, chicoteava o pescoço e cantava aos berros: “Quando
digo que deixei de te amar, é porque te amo... Quando eu digo que não quero
mais você, é porque eu te quero...” Os amigos e outros clientes faziam coro,
lançando os braços num ritmo de auditório de programa de TV, assistindo às lágrimas
que desprendiam enegrecidas daqueles olhos grandes e ciliosos, bem apertados,
decerto para enxergar melhor o autor daquele drama.
Noutro dia,
tomada por uma noitada de conselhos e pitacos, partia para uma nova discussão
de relacionamento. Começava com a voz serena, analisada: “Não podemos ficar
mais assim, amor. Assim eu não quero. Você tem que mudar, senão não dá, não
aguento.” Após algumas horas de exposição de argumentos, ele cala o silêncio e
se manifesta: “Você só diz isso porque não me ama.” Ela endoidece, dá-lhe
uns beliscões e sai do carro, batendo a porta furiosa e decidida a não vê-lo
nunca mais. Desta vez, cumpre. Durante meses, nenhuma notícia, nenhuma
inusitada serenata de perdão e chocolates. Desiludida, encharcou o travesseiro
por noites consecutivas, numa inconsolável abstinência de quase morte.
Mas na vida
nada se perde; tudo se transforma. E aquela saudade, tão singela quanto um
poema juvenil, se converteu em ódio feroz, cosido pelo capricho de recuperar a
autoestima e a sua afamada imagem perante seus solitários amigos.
Anos
depois, numa manhã de temporal, ela guiava seu carro quando o reconheceu
caminhando na rua. Veio-lhe o desejo irreprimível de passar por cima. Acabaria
de vez com aquele sofrimento desigual. Não teve coragem. Então, desviou a
direção e passou raspando, jogando-se em alta velocidade sobre uma poça de
lama, banhando-o por completo. Pelo retrovisor, enquanto assistia gargalhante àquela
figura estática e molhada, não imaginava que, naquele mesmo momento, ele sorria
triunfante: “E não é que ela ainda me ama?”
Adorei, Raymundo Netto, sobretudo o desfecho final! 😀😁
ResponderExcluirMuito grato pela leitura, Zinah. Há quanto tempo, minha amiga.. Grande abraço.
Excluiramei
ResponderExcluirObrigado pela leitura.
ExcluirIsso é que é um "amor rasgado" rrss.
ResponderExcluirHahahasgado... Boa.
ExcluirGostei muito. Realmente um desfecho legal. Principalmente para o moço da estória.
ResponderExcluirPara os dois, eu diria, cada qual com sua agonia particular. rsrs
ExcluirExcelente! Parabéns!
ResponderExcluirGrato, meu amigo.
ExcluirParece que o "você não me ama" era um recado pra ela de que ele é que não amava.
ResponderExcluirParabéns!
Taí, isso eu não sei responder. Mas podemos considerar justamente o contrário. Sei lá. rsrs
ExcluirMuito boa. kkkkkkkkkk
ResponderExcluirBem-vinda sempre, Sonia.
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