Eurídice era o diabo! Mulherzinha casca grossa, cruel, fofoqueira,
mais fria do que uma noite sem amor. Não à toa, afirmavam os cidadãos daquela
pacata cidadezinha esquecida, acabou sozinha: “E tem homem que aguente aquilo?”
Morava Eurídice
em uma casa alta, a mais elevada da rua principal. Às tardes, sentava-se atrás
da balaustrada, observando a todos de sua posição superior. Quando em vez,
gritava com os passantes, os criticava, revelava seus segredos compartilhados pela
funesta “rádio fofocaria” da cidade. Soberba, não temia ninguém e adorava uma
discussão, na qual, sem escrúpulos, saía vitoriosa.
Todavia, um
novo pároco, cansado de ouvir o seu nome malcitado pelos fieis, a alertou:
“Acautelasse, pois daquele jeito poderia cair no inferno!” Ora, o medo de ser
rebaixada à condição de inferno, logo ela, detentora de um espírito elevado – e
não movida por outro sentimento meritório –, a fez refletir e tentar amansar
seu coração tão “verdadeiro”.
Nos dias
seguintes, passou a bater à porta daqueles que havia injuriado. Para surpresa
deles, ela figurava um sorriso tão desconhecido quanto sinistro, acompanhado de
um discurso de falsas moralidades cristãs. Às mãos, uma cestinha de pães, doces,
geleia ou biscoitos. Certa de sua recompensa espiritual, após um curto e
desconcertado abraço, saía pela rua, pescoço altivo, ao olhar basbaque daqueles
que, logo, logo jogariam aquelas oferendas pela janela, com receio de estarem
envenenadas.
Embora
soasse falso e interesseiro, ela, reconhecemos, se esforçava. Por conta daquele
abraço, ao cruzar a porta de sua casa, corria para tomar um demorado e
esfregado banho. Chegava a doar ou jogar fora a roupa que usara. Diante de uma
abundante raiva de si, se inclinava ao oratório: “O Senhor está vendo, hein?”
Entretanto,
algo se deu. Aquelas pessoas começaram a confabular sobre o estranho
comportamento da “bruxa”. Cogitaram ter ela alguma culpa secreta, íntima, algo
grande, uma fraqueza qualquer. O que seria? Fato: a criatura estava ficando
mole!
Baseados
nessa certeza, a vizinhança deixou de temê-la. Olhavam-na com desdém, sorriam
cinicamente ao cruzar com ela no mercado, às vezes dando-lhe até cotoveladas e
esbarrões. Foi na feira, que aproveitando-se dessa fase de paz e amor, uma
incauta, antes perseguida, olhou-a com uma aversão singular e atirou: “Bruxa
velha solteirona!”
Eurídice
não acreditou no que ouviu. Teve vontade de espancar, morder a orelha e matar
aquela infeliz, mas, lembrando-se do alerta do padre, segurou como nunca seu
ímpeto atroz, caindo numa convulsão e agonia, seguida por uma espetacular ânsia
de vômito.
Em meio a todos
os curiosos, a mulher se contorcia, enguiando, enguiando até vomitar um imenso
dragão. A fera, saindo de sua boca, rugia aterrorizante, macabra e, voando com
as suas negras asas de morcego, cuspia fogo nas casas do entorno, colocando o
povo para correr – com exceção dos já desmaiados – e depois partindo em direção
ao horizonte.
Na semana
seguinte, Eurídice era de uma docilidade impressionante, dando bons-dias, desta
vez sinceros, livre agora da antiga azia que lhe tomava a boca do estômago há
anos. Mesmo assim, todos, desde então, a tratavam com excessivo respeito,
imaginando que outros terríveis monstros estariam abrigados, ali, no ventre
daquela mulher.
Que beleza, Raymundo Netto. Agora Eurídice não entra no inferno, mas o tira de si na forma de dragão... Com ou sem Orfeu...
ResponderExcluirObrigado pela leitura, prof. Leite Jr.
ExcluirTexto excelente com nota distinta de absurdo. Bravo!
ResponderExcluirGrato, prof. Vicente Jr.
ExcluirComo sempre um deleite seus textos, Raymundo Netto!
ResponderExcluirGrato, Lu, pela leitura.
ResponderExcluirO azedume sempre é efeito de algum mal que nos consome. Texto maravilhoso.
ResponderExcluirObrigado, Fabreu. Sim, quantos traumas, frustrações, estresses povoam a alma de nosso povo, hein?
Excluirmuitas vezes o fogo que não se "cospe" parece cozinhar o coração de quem guarda o Dragão no peito!
ResponderExcluirParabéns Raymundo Netto!
Obrigado, prof. Guilherme, pela sua leitura e por esse fogo no peito que parece que não, mas arde loucamente. rsrsrs Abs
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