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Sobre a Obra "Retorno de Bennu"
O retorno de Bennu,
livro que o leitor tem em suas mãos, divide-se em quatro seções, “Percepções”,
“Alumbramentos” – palavra que nos recorda imediatamente o nosso amado Manuel Bandeira
–, “Confluências” e “Lampejos”, sendo que a primeira e as duas últimas são
constituídas de uma forma entre o aforismo e o poema em prosa, esse admirável
achado de Aloysius Bertrand em seu Gaspard
de la nuit que, genialmente desenvolvido por Baudelaire nos Petites poèmes en prose e por Rimbaud
nas Illuminations, entrou de maneira
altamente prestigiosa século XX adentro, aí incluído o Brasil, com exemplos
magistrais de Jorge de Lima, do pouco acima lembrado Manuel Bandeira, de Carlos
Drummond de Andrade, de Mário Quintana e muitos outros. Já na segunda e mais vasta
das seções deparamo-nos com a arte característica de grande parte da obra de
Majela Colares, a de um consumado poeta lírico, oscilando, com notável
liberdade, entre a forma fixa e o verso livre, mesma liberdade com que
prescinde das rimas ou as utiliza em suas numerosas espécies, das quais as
relativamente bem divulgadas não passam das consoantes e das toantes. Em
relação ao título, aparentemente enigmático, uma nota do autor nos explica que “Bennu”
é o nome egípcio para a Garça-real, a Fênix da mitologia clássica, o que aclara
tudo de forma meridiana.
Os cinco poemas em prosa que compõem
“Percepções”, de um andamento rítmico irretocável, formam como um pórtico do
livro. Se “Manuscrito” é uma crítica clara à automação da vida, e, mais ainda, da
consciência humana, a reflexão sobre a Natureza dá origem a “Cantata”, assim
como, mas agora num nível cósmico, a “Miragem”. Já em “Mormaço” e “Ruminança”,
a Natureza brilhantemente pintada é a do sertão do seu Ceará natal. Em todos os
poemas o olhar em profundidade do poeta, aquele mesmo que dá origem a toda a
filosofia, casa-se à sua específica experiência vital.
Já em “Alumbramentos”, a única seção de O retorno de Bennu inteiramente composta
em versos, o poema inicial, “Trilha umbilical remota”, que remete ao título,
volta-se da Natureza para a História, inserindo-a, por fim, no seu quadro
cósmico, enquanto a Natureza retorna, religiosamente, no poema em dístico que
lhe sucede, “As horas de Deus”. Pouco depois chegamos àquele que nos parece ser
o poema central do livro, e que, muito coerentemente, lhe dá título. Vasta
composição em versos livres, trata-se de um desses raros poemas totalizadores,
um desses ainda mais raros momentos em que a visão do poeta, confundido com
Bennu/Fênix, a que renasce eternamente das próprias
cinzas, procura abarcar a Humanidade num único relance, histórico, geográfico
(numa fascinante enumeração fluvial) e especificamente humano, neste caso
através de uma plêiade de mestres, mestres artísticos, filosóficos, científicos,
éticos ou espirituais, da eleição formativa do autor. Trata-se, enfim, de um
poema de uma ambição quase inencontrável na poesia brasileira contemporânea,
cada vez mais gostosamente refestelada no confortável e informe território das
bagatelas e das insignificâncias.
Em seguida o leitor se depara com uma
série de poemas especificamente líricos, todos de um lirismo reflexivo,
diretamente centrados na vivência do poeta, carregados de uma religiosidade
algo panteísta, como naqueles que repetem a invocação “Vai, amigo vento, vai”.
Perto deles, em “Insônia de uma noite moderna”, reaparece a visão bastante
crítica da contemporaneidade que já encontráramos no primeiro poema do livro,
“Manuscrito”. Em toda essa parte, composta em forma fixa, as duas referências
centrais, formalmente falando, são os sonetos uma e forte proximidade com a terza rima, de mais do que provável
ascendência dantesca, relembrando que é de Dante uma das epígrafes que abrem o
livro, bem como seu nome é um dos citados entre os Faróis – para usar a imagem baudelairiana – do poema “O retorno de
Bennu”.
“Muito além do mistério”, poema final de
“Alumbramentos”, é como uma declaração de princípios de um poeta para o qual o
cerne da poesia está justamente naquela que consideramos uma das suas mais
agudas definições: “a arte de dizer apenas com palavras aquilo que apenas as
palavras não conseguem dizer”.
Ao adentrarmos “Confluências” o verso fica
definitivamente para trás, pois daí até o encerramento do livro nós nos
encontraremos na fronteira sutil entre o aforismo e o poema em prosa. Nesta terceira
seção a forma do aforismo nos parece, sem dúvida, dominante, aforismos de
índole filosófica, voltando o poema em prosa a tomar a dianteira em “Lampejos”,
como já a tivera na curta seção inicial “Percepções”. A reflexão sobre a Poesia
– assim com maiúscula –, sobre a sua alta e ao que tudo indica para sempre
perdida função de “Mestra da Humanidade”, posição que manteve da noite dos
tempos até pelo menos a decadência da Grécia sob o domínio macedônico e romano,
é um dos temas de eleição do autor, motivo pelo qual “Lampejos” consiste numa
muito curiosa fusão entre poema e prosa e crítica, ou até mesmo, poderíamos
dizer, profissão de fé.
Encerra o livro o pequeno poema em prosa
“Convicção”, onde aflora o tema dos temas, o tempo, nosso mistério fundador e
nosso palco inarredável, o que nos remete diretamente à ave mitológica que, em
seu mais remoto avatar egípcio, dá título à obra.
O explícito Humanismo que domina a poesia
e a visão do mundo do grande poeta que é Majela Colares situa-o numa posição
altamente sui generis dentro do
panorama da nossa poesia contemporânea. Sob o império do mais completo
relativismo, a grandeza de sua convicção soará anacrônica ao império do efêmero
e do seu cortejo de modismos, que avassalou o Ocidente, o qual, diga-se de
passagem, se esforça heroicamente para espalhá-lo para todo o resto do mundo.
Felizmente tal fato não arranha um verso,
uma palavra, uma vírgula dos poemas que aqui se encontram, o mesmo que ocorre
em relação a toda e qualquer poesia autêntica.
Carlos Vasconcelos
Sobre o Autor
MAJELA COLARES,
poeta e contista, nasceu em Limoeiro do Norte, Ceará, julho de 1964. Publicou
os seguintes livros em POESIA: Confissão
de Dívida, 1993; Outono de Pedra,
1994; O Soldador de Palavras, 1997; A Linha Extrema, 1999; Confissão de Dívida e Outros Poemas,
2001; O Silêncio no Aquário / Die Stille
im Aquárium, 2004, edição bilíngue português-alemão, trad. Curt
Meyer-Clason; Quadrante Lunar, 2005; As Cores do Tempo - 2007 1ª ed. – 2009
2ª ed.; Memória Líquida, 2012; Margeando o Caos/Vorejant el Caos, 2013,
edição bilíngue português-catalão, trad. Joan Navarro e O Retorno de Bennu, 2018. EM CONTOS: O Fantasma de Samoa, 2005. Tem participação em antologias
publicadas no Brasil e no exterior.
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