Fulgêncio
colocara um livro em sua estante.
Aparentemente mais um a compor o acervo de bibliófilo reconhecido. Antes de
fazê-lo, entretanto, deitaria em seu interior, como a divisar qualquer coisa —
o que não era o propósito —, um pequeno marcador de página. Acredite: todos os
livros naquelas estantes de arrodear sobejamente o salão de sua afamada
biblioteca encerravam marcadores de página, na verdade, esta sim, a coleção
queridinha de Fulgêncio.
Ria-se ele
quando os intelectuais e estudiosos da cidade ou dos arredores deitavam olhos
basbaques diante do relevo de seu acervo literário, tecendo-lhe comentários dos
mais prestigiosos. Ora essa, de nunca sonharem que para ele a aquisição de tais
obras era um preciosismo, um capricho de quem a sorte vingou fortuna. Ademais,
era mesmo um colecionador de marcadores de página e, assim, dava-se o luxo de
escolher berços de grande valia, condizentes àquelas supostas preciosidades.
Ali, os encontrava de todos os tipos e formas. Nem sabia desde quando, mas,
viajante contumaz, dera um dia de sair em busca dos gêneros possíveis, fossem
de papel cartonado, seda, renda, osso, couro, palha, em origami etc. Desde
então, cada um a lhe chegar às mãos, provocava das vezes de extrair-lhe
lágrimas ou, no mínimo, de render a noite inteira da mais fervorosa
contemplação. Os livros? Que os sebistas se preocupassem com eles. Tinha-os a
seus pés.
Aqueles a
não lhe compreender a mania, eram de pronto tachados de ignorantes: “Não
reconhecem um tesouro quando estão diante de um!”, o que não o aborrecia,
absolutamente; ao contrário, o exaltava diante das poucas visitas fatigadas de
histórias, mais de milhares, contadas demorosamente diante de um silêncio
ouvinte a admirar como era possível que cada pecinha daquelas, nas mãos de
Fulgêncio, tomasse ares de brilhantes.
Numa noite
não vulgar, chegou a um salão de festas. Figura ilustre e bem-posta na vida,
fora recebido com etiqueta e não tão sinceras lisonjarias. Até o anfitrião
deteve-se a saudações aligeiradas de quem não pretendia estragar a noite com a verborragia
de colecionador: “Convidei, mas pensei que não viesse... É doido!”, justificava
à mulher, irritada.
Beatriz,
filha moça do casal, ao vê-lo rodopiar altivo e solitário entre os convidados,
e sabedora de ele ser proprietário de basto patrimônio literário, aproximou-se.
Era, dizia, uma leitora voraz, grande apreciadora da literatura e, em especial,
da poesia. Visivelmente ingênua, transbordava um discurso meloso e romântico
que enjoaria até o Fulgêncio, não estivesse ele entediado da ausência de ouvintes.
As suas histórias de caça a marcadores pelo mundo entalavam a sua garganta e,
não por outro motivo, aceitou conhecer o acervo da casa.
E assim,
Beatriz o encaminhou à biblioteca, certa de que a sua coleção pessoal não o
animaria, mas também ela sofria da necessidade de falar a alguém.
Apesar da
pompa do gabinete, seu acervo era modesto. O convidado expressou apatia. O que
Beatriz não sabia, porém, é que aquele esnobe e presunçoso, de certa forma,
tratava-se de um ignorante. Nada entendia de poemas, de literatura, não
acompanhava folhetins, e tinha os livros de sua vasta biblioteca apenas como
invólucros caros para seus diletos marcadores de página, estes sim, a seu ver,
genuínas obras de arte.
Fulgêncio
pôs-se a olhar as fileiras de livros encadernados. Sacava um ou outro da
estante. Lia-lhes o dorso com falso interesse, a assentar o pincenê esverdeado
ao nariz. A jovem, deslumbrada, aproveitava e punha-se a descrever obra e autor
num falatório, sabemos, desperdiçado, recebido com monossilábico desentusiasmo.
Surpreendeu,
então, quando o Fulgêncio esbarrou-se na escrivaninha. Nela, quatro ou cinco
marcadores de página, coloridos, com detalhes dourados ou de vidro, quase
artesanais. Quis saber deles, da sua origem, mais e mais... Ela, interrompida
na descrição de Álvares de Azevedo, logo dispensou: “Se o senhor gostou, pode
levá-los, eu não uso.”
“Não, como
não?”, absurdou-se, e, mecanicamente tomou o exemplar que a moça tinha nas
mãos. “É o que você está lendo agora? O poeta?” Ela sorriu e assentiu com a
cabeça. Fulgêncio abriu o pequeno livro numa página marcada e surpreendeu-se:
em vez do tradicional marcador, havia uma rosa murcha, descorada, decrépita.
Era ela, aquela rosa, o marcador único que orientava e guiava a sua leitura:
“Não disse ao senhor que não precisava?” E sorriu, atrevida. “Que songamonga!”,
pensava afrontado. Não quis ver mais nada, lançou o livro na mesa, colocou os
marcadores no bolso. Pediu licença, tinha que beber água, precisava de ar, de qualquer
coisa. Não, nem precisava se incomodar, ele mesmo buscaria. Não estava se
sentindo nada, nada bem!
Passados
alguns minutos e dois ou três copos de vermute, o colecionador começou a
delirar. Admitia: nada havia de mais original e singular do que aquela rosa. Um
exemplar pálido, amarfanhado, é verdade, mas que viços e frescuras trazia inda
em si, a ponto de sobrepujar os demais e de resistir ao seu próprio fim? Na
cabeça do velho Fulgêncio os pensamentos rodopiavam em torno da rosa da
estudante, quando destemperou-se: aproveitando os clamores de vivas e o estalar
de champãs, desatinou pelo corredor em direção ao gabinete. Tomou o livrinho
com as duas mãos e, trêmulo, sorriu à rosa como a pedir seu consentimento. Não
esperou. Escondeu-o no fraque e retirou-se logo, apanhando o primeiro coche a
passar na rua.
Ao passo de
casa, estreitava o livro ao peito, chorando de alegria e vergonhas. Haveria de
pedir desculpas, sim, pela grosseria da furtiva retirada. Haveria de encontrar
também uma forma de buscar reparação àquela mocinha, coitada... Mas depois, só
depois.
Chegando à
sua biblioteca, acendeu o lampião, largou-se das roupas, arremessou de lado o
livrinho de Beatriz, julgando-o não merecedor de tal exclusiva prenda, tão belo
e extraordinário exemplar, um cálice amoroso que ora colhia com cuidado e
sentia, como virgem, em seus lábios... Escolheu novo livro, um dos mais raros,
e deitou-lhe a rosa na página 89, não percebendo que ferira o papel com um
espinho, de onde manaria, por sobre a última estrofe de um poema, um traço
indescrito de dor e de sangue.
Destemperei-me: esperar findar hiato temporal tão largo entre a MARCA e a DOR para então poder reuni-las essas partes em um marcador? Absurdei-me: muito largo mesmo o tal hiato! Mas a DOR da espera chegou ao fim. Diante de mim enfim a MARCA integral dos tempos que correm: o adjetivo suplanta o substantivo na narrativa vital; o acidente ganha ares de essência na filosofia que desorienta a pessoa humana brasileira. Terá o livro finalmente cumprido a profecia de sua desimportância contemporânea face à emergência de outros meios de expressão da humanidade do homem? Não mais uma função vital teria o livro; apenas a intrumental? Apenas um guardador de marcadores, expressão de uma de tara de um colecionador exótico? Não, não, não. O corte que separa dor e marca é marca da vitalidade substantiva do livro. E o escritor materializa essa essencialidade nos acidentes que nos alcançam os sentidos. Somos criaturas de dores cujas marcas habitam os livros.
ResponderExcluirMais uma vez parabéns, Dom Ray do Mundo.
Filosofia e literatura, combinação perigosíssima. Hahaha
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