“E
andando no sol que cega,/ sentir com triste espanto/como toda a vida e o seu
tormento/que corre continuamente é uma muralha/que em seu topo tem cacos
pontiagudos de garrafa”. Eugenio Montale (1896-1981), poeta italiano.
(Paulo)
Mário (Ferreira) Gomes morreu no último dia do ano. Foram juntos, ele e o ano. Quem não conheceu
Mário Gomes não é bem fortalezense. Tampouco sabe da importância do desvario
alegórico dessa figura singular, abusada, que sabia ser poeta e só falava com
quem elegia. Não portava identidade e fizera do centro antigo o seu habitat. A
sua obra é, inclusive, objeto de tese de mestrado da jornalista Ethel de Paula.
Paletó
sobre camisas, calças amarfanhadas e sapatos rotos por andanças. Seria ele
exemplar perdido da geração “beat”, como entendeu o e escritor Márcio Catunda? Ou pós-moderno “Carlitos”, o personagem de
Chaplin? Creio que ele viveu como quis e se sabia admirável em sua franciscana,
mas airosa figura, mesmo que a dorsal, aos 67 anos, não mais o deixasse ereto.
O
fato é que o G-1, imagine, o site da rede Globo, estampou, quase na hora, a sua
morte: “Ceará -... Mário Gomes era conhecido como poeta descomunal e se tornou
popular como transeunte da Praça do Ferreira e no Centro Dragão do Mar de Arte
e Cultura.”
A
exigente Folha de São Paulo, edição desta terça, 06, página C4, registrou:
“Mário Ferreira Gomes (1947-2014) - Um
poeta das ruas de Fortaleza”, em negrito mesmo, escrito por Andressa
Taffarel. Reproduzo duas colunas, mas foram três: “Vez ou outra, Mário Gomes
convidava as pessoas para irem a seu escritório na praça do Ferreira, em
Fortaleza. Se lhe perguntassem qual era o endereço exato, responderia sem
subterfúgios: ‘Na praça’ – às vezes a frase vinha acompanhada de alguma palavra
um tanto grosseira, não publicável aqui. O ‘escritório’ nada mais era que um
dos bancos do espaço público onde Mário reunia poetas como ele, amigos e
interessados em ouvir discussões sobre literatura. Além de sempre falar o que
lhe vinha à cabeça, era conhecido por seu desapego aos bens materiais. Até
tinha casa em um bairro da capital cearense, mas preferia viver como um
andarilho pelo centro, normalmente de paletó e com uma bebida e um charuto ou
cigarro nas mãos. Não admitia que lhe dessem esmolas. ‘Não sou pedinte, sou
artista’, dizia. Ajuda só aceitava de pessoas próximas...”
Leitor
ávido de jornais que não comprava, sabia dos acontecimentos culturais. Era
comum vê-lo no calçadão que medeia a Igreja do Rosário e o Palácio da Luz,
quando a Academia Cearense de Letras realizava solenidades. Ficava ao largo,
como a balbuciar alguns dos seus muitos poemas. Um deles: “Beijei a boca da noite/
e engoli milhões de estrelas./ Fiquei iluminado./Bebi toda a água do
oceano./Devorei as florestas/ A humanidade ajoelhou-se a meus pés,/pensando que
era juízo final./Apertei com as mãos, a terra/ Derretendo-a/As aves em sua totalidade/Voaram
para o além/Os animais caíram do abismo espacial. /Dei uma gargalhada cínica/E
fui descansar na primeira nuvem/Em que o sol me olhava/ assustadoramente./ Fui
dormir o sono da eternidade/ E me acordei mil anos depois/Por trás do
universo.”
São
tantos seus versos, livros e idas e retornos ataviados por caronas ao Rio e a
Salvador. Por fim, Mário quedou-se e se apropriou da praça e do Dragão do Mar. Ia
à rua Pereira Filgueiras e à Rua Dom Joaquim, em raros sábados. No dia 31, pela
manhã, o artista plástico Tota me visita e fala do estado grave do Mário. Disse
que logo passaria pelo IJF. Em seguida, o Raymundo Netto liga e diz: “O Mário
morreu”. Era começo da tarde, sol
zenital. Chego ao IJF. Encontrei-o já no necrotério gradeado. O cadeado foi aberto
por pachorrento e gentil servidor e a corrente tintilou como sino. O Mário estava sobre uma maca, lado direito, envolto
em panos brancos e limpos, atados por fitas gomadas. Literalmente, empacotado. Logo
ele que amava a liberdade.
Desci
ao Serviço Social e encontrei o escritor Raymundo Netto e o artista plástico
Tota. Faltava a carteira de identidade para os seus dados oficiais. Exigência
legal, mas o capitão da segurança amoleceu quando o Tota mostrou cartolina com
fotos do último aniversário do ex-vivo e, um livro com a sua foto na capa. Houve surpresa, a irmã chega e mostra o seu
plano funerário. Mário não precisava da ajuda de ninguém. Altivo, até depois da
morte.
Lembrei-me
que o via por aí, quase encurvado, como um arco sem flecha , entre profundas
pitadas de cigarro, com passadas em zig-zag a desobedecer a Lei da Gravidade.
Pois foi justo ela, a que chama todos os corpos para o
centro da Terra, que o fez cair e passar dois dias no IJF, entre resmungos,
desaforo aos médicos e aos enfermeiros e o zelo do amigo Tota.
Manhã
do primeiro dia de 2015. Mário de barba escanhoada, paletó com gravata, deitado
para sempre no pátio da Biblioteca Dolor Barreira. Ou voltará daqui a 1.000
anos? Algumas coroas, irmã, sobrinha e pouca gente. Alguns falaram, dizendo das
artes e travessuras do silente. Lágrimas, risos e, por fim, um Pai Nosso. Ele
já descansava na primeira nuvem branca de um céu azul e, me pareceu, que cinzas
do seu cigarro caiam sobre o passeio.
(publicado em O Estado, 09 de janeiro de 2015)
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