sábado, 17 de janeiro de 2015

"O Exercício de Amar", crônica de Raymundo Netto para O POVO (17.1)


Aprendi sobre amor e o amar com minhas filhas. O mais interessante é que elas nunca precisaram me dizer uma só palavra sobre isso.
Comento sempre com outros pais sobre um fenômeno que aconteceu comigo: quando tornei-me pai de minhas primeiras e únicas duas filhas, todos os filhos dos outros passaram a ter identidade com elas. Não podia ver pai ou mãe correndo doidos atrás de menino, criança apanhando, correndo risco de queda ou perdida em loja de shopping, que me desesperava, procurava resolver, avisava aos pais, tomava as dores. Só o amor explica isso.
Um dia, na sala, num daqueles domingos de nós três, eu, que era adorador de TV, percebi que há anos não mais assistia a meus programas, pois estava sempre assistindo aos delas. Percebi ser caso de renúncia espontânea, nem de doer, sem cobrança de nada em troca, simplesmente pelo prazer de estar ao seu lado, compartilhando o seu mundo e vivendo das suas emoções.
Também observava o esforço que a mãe delas fazia para conseguir, diante de tão ralos cabelos daquelas cabeças, colher nanofiapos para enfeixar em laço, arte que nunca aprendi, mas que admirava e tentava, a meia boca, repetir, quando ao penteá-los após o banho, coisa que eu adorava fazer. Da mesma forma, era nas noites em que Rachel, mesmo depois de um dia intenso de trabalho, sentava à mesa a encapar livros e cadernos, com o cuidado de colar as fotos impressas em carinhas de jato de tinta.
Durante o tempo em que vivi com elas, fazia questão de, ao chegar na escola, carregar suas bolsas, suas merendeiras, acompanhá-las até as carteiras, abraçá-las, beijá-las e desejar bom-dia, como se fora, sem drama, a última vez, pois esta não manda avisos. Saindo, puxava conversa com os colegas ou mesmo com os professores, procurava saber-lhes os apelidos, a impressão que teriam de minhas meninas, na tentativa de, muito tímidas, entrosá-las.
Outro ato de amor que aprendi no exercício paterno, foi o de não fantasiá-las, como fazem alguns pais criadores de monstrinhos, na ilusão de serem melhores do que os outros e reconhecidos pelos demais como se fossem pequenos adultos a viverem a vida frustrada dos pais, reflexo de uma educação recalcada e da mais pura arrogância reflexa. Para mim, um ato egoísta e de narcisismo, muito comum, inclusive, naqueles que trabalham com arte e cultura, e que anseiam criar gênios que eles, pais, nunca foram, nem serão. Ao contrário, pelo amor que tenho, procuro descobri-las, ouvi-las, respeitar-lhes o ritmo, reconhecer seus gostos, sua voz, entender suas motivações, seus medos, perceber o que as faz felizes, o que lhes acende o brilho do olhar. Amo quem brilha no olhar.
E qual a recompensa disso? Mais amor. Apaixono-me hoje ouvindo-as falar pelos cotovelos sobre as suas vidas, sobre os coleguinhas, os gostos musicais, as dúvidas e as certezas (adolescentes têm sempre mais certezas), a sua visão de mundo, num ato que parece expressar, para meu orgulho, a confiança que têm em mim, da mesma forma que pago essa confiança, confiando nelas, conversando sem impor minhas opiniões, sem criar personagens ou ostentar discursos preconceituosos e dogmáticos, mas acompanhando o revelar de suas vidas, como fora um humilde leitor.
Ouço-as, e me lembro das noites que passamos juntos, balançando em minha cadeira de palhinha, coisa mais amada, ou caminhando pelas alamedas da antiga morada, enroladinhas em manto colorido, e tenho saudade daquelas duas cabecinhas acolhidas uma em cada ombro, no calorzinho do pescoço de uma noite estrelada, ao vento e ao sereno, da musiquinha cantada sem pressa, e a impressão de que é possível o mundo se sustentar no afeto daqueles futurinhos preciosos de boquinhas cor de rosa.
Percebo-lhes a modéstia, a simplicidade, a bondade e a graça como reconhecem a própria vida e me ensinam a amar. Sou muito grato por isso. Meu maior presente, o que me faz insistir, é a beleza do que me ocupa a vida esse amor de Luana e Liana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário