domingo, 23 de novembro de 2014

"Manoel de Barros e a Orfandade da Poesia", de João Soares Neto


“Um mérito inegável da poesia: ela diz mais e em menor número de palavras que a prosa”.  (Voltaire)

Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em 19 de dezembro de 1916 no Mato Grosso. Que, depois, virou dois estados. Nasceu em Cuiabá, morreu em Campo Grande. Dois em um. Formou-se em Direito, advogou até. Casou-se, teve filhos, cansou de advogar e virou fazendeiro/poeta. Sofreu. Perdeu filho em desastre aviatório, mas nunca usou a tristeza como mote. Há um ano padecia e se finou no dia 13 passado [novembro/14]. Quem quiser procurar, ele está em alguns escritos meus. Ora como epígrafe, ora com suas frases despidas de retórica, mas poéticas. O que escrevo abaixo é mera pesquisa/colagem. Reúno o que falaram sobre Manoel de Barros. Falta-me envergadura para descrevê-lo. Uso os outros como meio. Eu sou a mensagem. Carlos Drummond de Andrade, em 1986, teve a coragem de dizer que Manoel de Barros era o maior poeta brasileiro vivo. Não mentia.
A morte de Manoel de Barros nos entristece e mostra uma dura realidade: há poucos bons poetas no Brasil de hoje. Há rimadores e metrificadores, mas lhes falta essência na poesia, sobra a não naturalidade. Ele, Manoel, quis apenas dizer o simples,  não se propôs a voos condoreiros que não mais cabem neste mundo transformado por mudanças que o dealbar deste século nos impuseram. Voou fora de sua própria asa.
  Cada época da história deu à civilização um novo compasso. Ocorre que a invenção do chip, do computador, da internet, dos D.Js., da quebra de fronteiras, dos livros digitais e do surgimento de novas linguagens, incomuns aos renitentes, mostram o atraso que nos persegue.
A “vanguarda primitiva” de Manoel de Barros possui sintaxe própria, sem o rebuscamento inglório dos que não sabem ser simples. Alguns se lastimam, outros cantam amores e há apenas os que tartamudeiam. Ele elegeu a singeleza. Vejamos: 1. Gravata de urubu não tem cor; 2.O esplendor da manhã não se abre com faca; 3. Mais alto que eu só Deus e os passarinhos. A dúvida era saber se Deus também avoava. Ou se Ele está em toda parte como a mãe ensinava. 4. A poesia está guardada nas palavras – é tudo que sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim, poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado de elogios.
Em um especial da televisão GNT vê-se profunda identidade entre Manoel de Barros e o seu simplório caseiro, ambos felizes. Manoel de Barros poetou, pela primeira vez, em 1937, em plena ditadura Vargas, pouco antes da eclosão da Segunda Grande Guerra Mundial. Talvez, quem sabe, optou por ser lírico ou onírico. Nada de engajamento, de questionamentos, de dores de amores, de metáforas buarqueanas, que viriam depois.  Era direto ao ponto. No filme documentário feito por Pedro Cézar, de 2008: “Só Dez por Cento é Mentira”, o autor parte de um chiste de Barros: “Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”. Para Armando Freitas Filho, citado por Sérgio Rizzo, na Folha de São Paulo, em 14.11.2014, Manoel de Barros “começou como um poeta formal, clássico, de dicção nobre, até chegar a uma poesia singular”. Refinou-se. Como ele próprio dizia: “Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma”.
Barros teve a sua fase revolucionária, diz Noemi Jaffe, doutora em literatura. Foi comunista e rompeu, sem tecer armas, com Luiz Carlos Prestes, quando o marido de Olga Benário, deportada para a Alemanha por ordem de Vargas, aliou-se ao Getulismo, por ser útil. Como se sabe, Manoel de Barros era a favor da utilidade do inútil. Mia Couto, escritor moçambicano, enamorado pelo Brasil e que gosta muito de aparecer por sua fotogenia, não perdeu a oportunidade: “Não era apenas um poeta, um recriador de um idioma que, depois dele, se tornou mais nosso... Era um filósofo que pensava e repensava o mundo por via da poesia”. Óbvio.
Agora, editados os cadernos literários por sua morte esperada e as menções de praxe, Manoel de Barros vai continuar a ser lido por poucos. Não era funileiro de palavras. Era poeta, só. Cumpriu o seu fado. Poeta não é confeiteiro de frases. É músico sem metrônomo que escuta compassos e dissonantes e os transforma em versos melodiosos. Se a poesia é uma religião sem esperança, como queria Jean Cocteau, Manoel de Barros ultrapassou esse estágio. Viveu de esperança. Sua filha Martha despediu-se do pai com uma frase dele: “Do lugar onde estou, já fui embora”.


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