O CADERNO “VIDA& ARTE” DO JORNAL O POVO
EM VIRTUDE DO LANÇAMENTO DA COLEÇÃO NOVA TERRA
BÁRBARA
(06.10.2024)
1. EM
PRIMEIRO LUGAR, GOSTARIA DE SABER O CONTEXTO DO LANÇAMENTO DESSA NOVA TERRA
BÁRBARA. COM QUE PROPÓSITO SURGIU ESSE PROJETO?
Em 2025, a Coleção Terra Bárbara completa 25
anos de sua primeira edição, na época, concepção e coordenação de Lira Neto. A Coleção
Nova Terra Bárbara surgiu com o propósito de ser uma edição comemorativa
desses 25 anos, dando continuidade ao objetivo da coleção, que é reconhecer, valorizar e promover a diversidade cultural,
definida por meio de linguagens artísticas, múltiplas identidades e expressões
culturais, democratizando o acesso ao conhecimento e reconhecimentos de
personalidades cearenses – nascidas no Ceará ou que, mesmo nascidas em outros
estados, tiveram no Ceará o seu campo maior de atuação e/ou que aqui deixaram
seu maior legado – nos mais diversos âmbitos e/ou linguagens artísticas, como:
literatura, dança, teatro, música, artes visuais, política, ciência, arte,
cultura, religião, economia etc.
“Terra
Bárbara” é uma homenagem do Lira Neto, editor das EDR na época, ao jornalista e
escritor Jáder de Carvalho – sendo dele um dos primeiros cinco perfis
publicados em 18 de maio de 2000 –, em menção ao seu homônimo poema que em seus
versos nos diz: “Na minha terra,/ as estradas são tortuosas e tristes/ como o
destino de seu povo errante
2. QUAIS
SÃO AS DIFERENÇAS OBSERVADAS NESTA NOVA COLEÇÃO EM RELAÇÃO À ANTERIOR?
Em
minha apresentação da Coleção, escrevi que a sua grande
novidade, ao nos referirmos a um produto editorial brasileiro, talvez seja a
sua continuação, mesmo decorridas mais de duas décadas.
A diferença maior aqui se dá na concepção do
projeto gráfico, em seu formato, ainda pocket (de bolso), contudo, acreditamos,
mais elegante, e na inserção de subtítulos à obra, ampliando o apelo e atrativo
ao(à) biografado(a).
Tentamos até orientar algumas mudanças no
conceito da própria formulação de texto, mas considerando a liberdade de
escrita e de método de cada autor(a), deixamos livres essa produção,
logicamente, conduzindo durante o processo de edição e em acordo com os(as)
autores(as) algumas dessas mudanças.
3. QUAIS
SÃO OS DESTAQUES DESTA NOVA COLEÇÃO EM SUA ANÁLISE?
São 10 os
novos títulos da Coleção:
· Narcélio
Limaverde (Natercia Rocha)
· Adísia Sá
(Luiza Helena Amorim)
· Henriqueta
Galeno (Natercia Rocha)
· Juvenal
Galeno (Raymundo Netto)
· Alba
Valdez (Keyle Sâmara de Souza)
· Emília
Freitas (Alcilene Cavalcante)
· José
Alcides Pinto (Carlos Vazconcelos)
· Suzana de
Alencar Guimarães (Carmen Débora Lopes Barbosa)
· Gerardo
Mello Mourão (Rodrigo Marques) e
· Francisco
José de Abreu Matos (Mary Anne Medeiros Bandeira)
Quando da concepção dos títulos da nova Coleção,
fiz questão de assegurar um número equitativo entre homens e mulheres
biografados(as), o que fizemos. De acréscimo, desta vez não intencionalmente, o
número de biógrafas superou o número de biógrafos: 7 mulheres e 3 homens.
Todos os títulos se referem a novos(as)
biografados(as), embora conhecendo a Coleção, acredito que alguns dos mais de
60 perfis biográficos publicados até hoje poderiam e mereciam, sim, um novo
olhar, uma revisão da atualidade e até por outros(as) biógrafos(as).
Adísia Sá,
a única biografada ainda viva, já teve uma biografia publicada pela própria
autora, a jornalista Luiza Helena Amorim, mas desta vez, segundo a autora, traz
um novo olhar sobre a história de Adísia, “um novo relacionamento com as fontes
históricas, com os fatos, com os modos de contar uma vida”.
Estreia nessa fila, Narcélio Limaverde,
o grande homem do rádio, em seu primeiro perfil biográfico, de autoria de
Natercia Rocha. Narcélio, em janeiro de 2025, completará 3 anos de sua
passagem.
É também de autoria de Natercia o perfil de Henriqueta
Galeno, uma das grandes novidades da Coleção, saindo de seu papel de
guardiã do pai para o de feminista e grande promotora da literatura e da
cultura cearense na criação e na resistência na manutenção da Casa de Juvenal
Galeno, equipamento cultural vinculado à Secult-CE, a meu ver, o mais legítimo
centro cultural do Ceará.
Emília Freitas, de autoria de Alcilene Cavalcante, com o subtítulo
“a rainha sem rosto”, é outra inserção obrigatória nessa coleção. Ela que é autora
de A Rainha do Ignoto (1899), primeiro romance fantástico brasileiro,
atualmente estudada nacionalmente por diversos(as) pesquisadores(as), mas que
até hoje ninguém conseguiu sequer uma imagem da autora.
Gerardo Mello Mourão, cearense pouco conhecido pelos(as)
leitores(as) cearenses, mas que chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel, vem
pelas mãos de Rodrigo Marques, em uma biografia bem ao estilo “romance”.
O “poeta maldito” José Alcides Pinto
chega merecidamente na Coleção por meio de Carlos Vazconcelos, que nos
apresenta esse que é sem dúvida um dos mais prestigiados e valorosos nomes da
nossa literatura contemporânea.
O perfil de Francisco José de Abreu Matos,
o criador do projeto “Farmácias Vivas”, grande cientista e botânico brasileiro, que se
vivo fosse estaria em 2024 completando seu Centenário, é escrito por Mary Anne
Bandeira.
Susana de Alencar Guimarães teve sua biografia lançada de forma
independente por sua sobrinha-neta Carmem Débora Barbosa. Desta vez inclusa na
Coleção NOVA Terra Bárbara, merecidamente, por sua história estar vinculada
diretamente a Demócrito Rocha e ao jornal O POVO. Ela, a quem Rachel de Queiroz
chamava de “madrinha”, embora tivessem praticamente a mesma idade, participou
ativamente na revista Ceará Ilustrado, no suplemento Maracajá
(única mulher a figurar no retrato do “grupo Maracajá”, que reunia os modernistas
cearenses, em 1931) e dos primeiros anos do jornal O POVO, fosse como escritora
(cronista, poetisa) ou como crítica literária, de cinema e das artes plásticas.
Alba Valdez
é outra personagem feminina que, por meio de Keyle Sâmara Ferreira de Souza,
não poderia mais ficar de fora da Coleção. A escritora foi a primeira mulher a
ingressar na Academia Cearense de Letras, sendo membro também do Instituto do
Ceará e fundadora da Liga Feminista Cearense.
Um personagem que inaugura quase tudo que
conhecemos na literatura produzida no Ceará é Juvenal Galeno, o que nos
faz estranhar que, em 25 anos, não tenha sido ainda motivo de nenhum perfil
biográfico da Coleção. Virá desta vez, escrito por mim.
4. VOCÊ ATUA COMO EDITOR E TAMBÉM COMO
BIÓGRAFO. QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS DESAFIOS DE LIDAR COM ESSAS FRENTES?
O trabalho do editor é quase sempre ingrato.
Editar seja o que for é colocar-se na condição de juiz, é incorporar a tomada
de decisão, de escolhas. Isso, editar é escolher. Um bom editor pode,
naturalmente em consenso com o(a) autor(a), dar luz ao texto, trabalhar
graficamente para realçá-lo na obra, torná-lo uma leitura agradável, sedutora.
Para isso é preciso ter sensibilidade, afinidade com esse “bicho-livro”,
aproximar-se da intenção do(a) autor e do conceito da Coleção que, por si só,
tem a difícil tarefa de cair no gosto de um público heterogêneo, de faixas
etárias distintas, de graus de instrução distintos. O livro tem que ser
saboroso de ler e deve ter o poder de reter nosso(a) leitor(a), e isso não é
missão apenas de quem escreve, mas de quem o edita.
5. QUAIS SÃO OS DESAFIOS RELACIONADOS À
ESCRITA BIOGRÁFICA E QUAIS OS CUIDADOS NECESSÁRIOS?
Um dos maiores desafios da escrita biográfica é
manter a objetividade, o olhar crítico e não se deixar sucumbir à heroicização
da personagem biografada (nem a sua vilanização), principalmente quando se
conviveu muito de perto ou se tem grau de parentesco ou amizade com ela. E não
vou dizer que nessa Coleção não tenha acontecido isso em maior ou menor
intensidade: aconteceu também. Aproximar-se do outro(a), revivê-lo, adentrar um
universo, a princípio desconhecido, para compreendê-lo pode mexer com a cabeça
das pessoas. Claro, não é possível entender a realidade da personagem sem nos aproximarmos
do seu contexto social e histórico, pois corremos o risco de nos iludirmos com
estereótipos, ideias e imagens distorcidas de seu tempo até pelo(a) próprio(a)
autor(a). Risco maior é o de usar da ficção para preencher lacunas, o que
também não é incomum no mercado editorial de biografias. Aliás, muitas dessas
são as que mais agradam ao gosto popular.
É preciso ter um pouco de empatia com a
personagem, mas quando se há um alto grau de identificação, é grande a chance
de se tornar parcial demais.
A vigília de um biógrafo passa por duas fases
importantes de sua construção: a da apuração (busca por fontes históricas
confiáveis) e a da sua escrita. E nessa primeira fase estamos cientes de que é
muito real a chance de não encontrar material suficiente para alcançar a
personagem em todas as suas nuances, o que pode levar a especulações e
suposições. Conforme a sua presença, algumas ainda podem ser bem-vindas para
provocar um futuro estudo, uma análise a partir do conjunto documental, mas
outras podem simplesmente desvirtuar a verdade pelo simples pretexto de
“defendê-la”, “protegê-la”.
Outras vezes, encontramos durante o processo
de apuração, histórias e dados fornecidos por conhecidos intelectuais, não
necessariamente bons biógrafos, que não têm comprometimento algum com a
realidade, porém, sendo há anos replicados erroneamente. O(A) autor(a) tem que
ter condições e repertório suficientes para refutar essas informações
“daninhas”.
Em alguns títulos da nossa Coleção,
estimulamos que os(as) biógrafos(as) apresentassem ao(às) leitores(as) as
divergências e contradições encontradas durante a sua escrita para que eles(as)
próprios(as) pudessem construir seus questionamentos e interpretações a
respeito.
Para escrever biografias faz-se mister saber
que elas serão sempre limitadas por fatores vários. No caso da Coleção NOVA
Terra Bárbara, não temos a pretensão da plenitude, até por que nos propomos
apenas a desenvolver perfis biográficos, ou seja, queremos, sim, atrair
nossos(as) leitores(as) para conhecer esses nomes, saber a respeito daquele(a)
personagem, sentir desejo de ler suas obras, conhecer seus legados, compreender
o seu tempo e espaço.
E, naturalmente, temos ciência de que,
conforme novas evidências, como registros e documentos que podem aflorar de
algum lugar inesperado, alguns pontos da história dessas personagens poderão
ser elucidados e/ou acrescidos, o que nos faz ter a feliz certeza de que
nenhuma biografia é definitiva!