Contudo, trago aqui uma constatação nada
original, mas sempre necessária: a poesia é de uma inutilidade singular.
No mínimo, uma utilidade inútil, como defendida por filósofos, estudiosos e
até, com um certo embrulho no estômago, pelos próprios ou pelas próprias poetas
ou poetisas.
Entre esses poetas, o marginal Alcides Buss,
autor da obra Círculo Quadrado, que afirma que a autenticidade da poesia
reside exatamente na sua inutilidade. E entende os poetas como “seres
bastante incomuns que escrevem com o corpo todo”, o que os diferem dos demais
escrevedores que usam só as mãos, os mais simples, ou aqueles que usam as mãos
conjugadas à memória, à imaginação, ao pensamento. Mas nada, assegura ele, se
compara ao poeta que escreve com o corpo todo.
E quando fala do corpo todo, admite que o seu
corpo e o corpo do mundo também se entrelaçam, se fundem ou se completam
sinergicamente, de maneira que o sol, a lua, as estrelas, o crepúsculo, as
marés, os mares e os seus mistérios, as árvores, as flores que desabotoam nos
jardins, os seus perfumes, os animais, as crianças, os homens, as mulheres, os
seus amores ou dores, tudo, tudo é acolhido nesse corpo todo.
Sabemos que a poesia percorre um caminho
indefinível que vai da pacífica oração ao exorcismo, da quase inocente magia à
bruxaria, da sensação leve da harmonia à angústia do caos. Mas nunca, nunca é passiva.
Diante desse cenário, nos perguntamos para que
serve à poesia... Ou talvez, a quem ela serve? Ao sistema consumista? À
estrutura do poder, da política? À necessidade premente e imediata de lucro
todo o tempo, toda a hora, a qualquer custo, como as demais engrenagens de
nossa vida a nos escravizar, aprisionar, a nos adoecer, a nos arrebatar
covardemente a vontade de viver? O que assistimos hoje é o amargor vencendo a
doçura, a ternura que, juramos, não poderia ser perdida.
Não, a poesia é inegociável e, ao contrário
das coisas mundanas, ela é livre, pois ninguém a possui e ao mesmo tempo ela,
se a porta estiver aberta, nos encontra quando menos esperamos. Quando abrimos
os olhos pela manhã ou ao chegar à janela e nos depararmos com a beleza ainda
virgem do céu, de um sol despertando molinho, molinho... Quando diante do olhar
cheio de vida de uma criança faladeira; quando nos é roubado aquele beijo,
mesmo que ainda mudo, num instante em que parecia que nada, nada mais poderia nos
acontecer; ou quando a xícara de café quente nos toca os lábios e divisamos
coisas que não estão mais aqui, que se perderam em um dos desvãos de nossos
caminhos. Sentimos os cheiros, os sabores, ouvimos as suas vozes e nos dá
saudade... E saudade, como registra Neruda, é quando o amor ainda não foi
embora, mas o amado já.
Hoje, quando a luz
acordou o dia
Cada raio acordou em mim
uma saudade.
Uma saudade agigantada,
Dilatada pelo pulsar de
desbotadas lembranças.
Lembranças dos dias que
não vivemos,
Dos encontros que não
tivemos,
Do grito abafado pelo
desejo contido.
Lembranças da chuva que
ainda nuvem...
E v a p o r o u .
. .
Até então falamos da poesia, agora falemos dos
poemas.
Algumas pessoas, nós os chamamos de poetas
e/ou poetisas, se aventuram e ousam com coragem, talento e renúncia a colher
desse mundo imaterial os insumos e, tal qual Prometeu o fez, quando roubou o
fogo dos deuses para entregar aos homens, modelam e transformam essa luminância
poética em forma de poemas, disponibilizando-os para a humanidade.
É o que a Hermínia faz hoje ao nos oferecer o
seu Livro das Ausências, uma coletânea de poemas captados desse
universo muito íntimo da poeta, desse corpo em interação com o mundo, mesmo que
apenas o seu, que ela classifica de ausências que cantam, que gritam, que
pulsam, que saltam e que sangram.
E, em meio a eles, seus poemas, independentemente
da classificação da autora, nos trazem outras ausências, entre elas as que nos
calam, que nos confrontam, que nos devoram até o ponto de ser tão presentes na
nossa vida.
O titã Prometeu foi punido por Zeus, que temia
que, com o fogo, os homens pudessem se tornar tão poderosos quanto os deuses. A
punição era dolorosa: Prometeu, eternamente amarrado a uma rocha, assistiria a
uma águia a devorar seu fígado. O órgão se regeneraria diariamente, e, para
todo o sempre, a tal águia o comeria.
A nossa poeta, que ora celebramos, nos fala em
algum instante de verso: “o respirar
enfermo, o peso insuportável de todas as dores do mundo”. E daí trazemos Vinicius:
“assim como o poeta só é grande se sofrer” ou “que todo grande amor só é bem
grande se for triste”.
Mas então ouvimos um
conselho de Hermínia:
Há momentos em que o
grito aprisionado
Se agiganta.
Nessas horas, o melhor,
É escancarar a porteira
do peito
E permitir vazão
Ao que vem da
garganta.
A ausência de alguém, de
um tempo, de um lugar é um estado de alma. Algo que pode nos faltar
materialmente, mesmo que sintamos ou saibamos nunca distantes, quando desse
alguém, desse tempo ou lugar nós precisamos, bastando apenas nos conectarmos
com a nossa, vamos chamar assim, consciência.
Há, no entanto certas
ausências que parecem um sequestro de si, que por vezes nos doem tanto,
principalmente enquanto estamos distraídos, e a gente acha até que não pode
suportar:
As fotos no velho álbum
Trazem de volta uma
saudade
Que rasga o tecido da
tarde.
As fotos sorriem para mim
E me fazem
chorar.
Marilena Chaui nos faz refletir que “falamos
porque cremos nas palavras e nelas cremos porque cremos em nossos olhos: cremos
que as coisas e os outros existem porque os vemos e que os vemos porque
existem. Somos, pois, espontaneamente realistas.”
E é esse mundo realista e transbordante de
poesia que encontramos na tessitura da obra de Hermínia, cuja seiva principal a
percorrer suas páginas são memórias, sensações, lembramentos, desejos,
delírios, despedidas e distâncias.
Tuas cordas nas minhas
cordas,
Minha pele nas tuas mãos.
Tu, um vento; eu, uma
canção.
Passaste, passei,
passamos,
Em vão?
Hoje, somos sombra,
ausência,
Saudade e silêncio,
Ou nuvem a dissolver-se
Na noite, na
escuridão.
Hermínia escreve com todo o corpo. Cada
ausência por ela segmentada nos traz a sua presença, uma faceta distinta e
verdadeira, e é na verdade dessas saudades poetizadas é que as suas palavras
nos tocam. O corpo da poeta em consonância com o corpo do mundo, de todo mundo.
Memórias que também são nossas e nos são tão caras, pois são o nosso repertório
de vida.
A casa adormeceu
silenciosa.
Só as redes cantavam
Sua canção de punhos em
movimento,
Acalantando o sono e os
sonhos,
Nos braços alaranjados
Das maternas e ternas
varandas,
Volutas ao vento vivo e
violento
De um outubro
saudoso e sonolento.
E mais adiante os seus
fantasmas, quando seus medos gritavam saindo de sua boca; a chuva a cantar do
lado de fora pela janela; o recanto seguro entre as pernas da mãe a pedalar na
velha máquina de costura; as cadeiras na
calçada; o cavalo Ventania; o pião de madeira carrepeteando pelo chão e outras
brincadeiras de menina-menino; os temperos-cheiros da avó, como beiju de 3 dias
guardado para festejo no café da tarde; o seu avô Luís com seus bolsos repletos
de bombons; as saudades da terra que a acolheu, São Luís do Maranhão, com suas
histórias, seu bumba-meu-boi, da “batucada dos pandeirões, em couros febris
tocando toadas na beirada das fogueiras”; o Bento, em tudo ali, o inesquecível Bento.
Além disso, para não
trair sua trajetória, encontramos poemas com teor sensualíssimo, arrebatador,
eu diria até terrivelmente apaixonados, de marcar com ferro e deixar em
carne-viva de brasas:
Se eu pudesse,
Eu pousaria acesa,
Sobre ti,
Como um sol nascente,
De pele incandescente,
E beijaria, calma e
solenemente,
Os teus desejos mais
insanos.
Se eu pudesse,
Eu rasgaria a pele dos
teus pudores,
Eu seria a soma de todos
os teus amores,
Só para desaguar em ti,
Minha lava de anseios,
Sobre as tuas costas.
Se eu pudesse,
Eu te sufocaria com
beijos,
E queimaria, com o meu
vulcão,
Teus rebanhos
apascentados,
Sobre tua
tranquilidade de pastos.
Hermínia, minha amiga,
agradeço demais, em nome de todas e todos nesta plateia, esse livro-presente,
que honra e dignifica a poesia, a nossa literatura cearense e brasileira.
Hoje num panorama em que
há tantos poetas e tão pouca poesia, chega a nós uma obra como essa em que ela
está marcadamente presente, com a sua força e pulsar, assim como nós vemos
você, e concordamos:
Quando uma leitura nos
encanta,
O livro que nos fala
nela,
Enquanto conta,
Também canta e acalanta
Nossos desencantos.
O livro acalma saudades
E peles inquietas.
Preenche lacunas abertas
E irriga o vale da vida
Saciando, com saberes,
Nossas sedes e
ausências.
Meus mais sinceros
parabéns.
Raymundo Netto,
23 de setembro de 2023