“Esses sãos desígnios de Deus, e eu os
aceito.” Essas foram as últimas palavras de minha mãe, deitada em uma maca
hospitalar, antes de cerrar os olhos pela última vez, como se fosse apenas cair
em sono profundo. Estava ali, toda arrumada, linda, para assistir a um culto do
Dia dos Finados, quando o coração emudeceu. A equipe médica tentou trazê-la de
volta e ela não quis. Todos nós saberíamos: ela não queria mais. Era o ano de
2016, e um dia propício para partir. Passaram-se sete anos, desde então, e ela
continua viva.
Minha avó Alice, mãe de meu pai, ao
contrário, turrona e contestadora, escolheu justamente essa data, o dia dos
mortos, para nascer! Era bem dela... Próximo de sua morte, não queria ver
ninguém. Permitia apenas a filha que residia e tomava conta dela. Fora ela, que
ninguém a visse assim, em plena decadência de seu rumo à morte.
O seu filho descansaria quase dois anos
após a passagem de minha mãe, no dia 25 de outubro de 2018. Queria curtir um
pouco mais dessa vida e dessa terra que tanto amou. Tendo a sua filha caçula
como cúmplice, caminhava no calçadão à beira-mar, ia à praia colocar os pés na
areia e no mar, tomar sua água de coco, rever amigos – mesmo quando muitas
vezes não se lembrava deles. Ela comprava suas roupas, o arrumava, o deixava bem
cheiroso, e o levava a locais em que se tocava músicas de seu gosto e, quando
possível, arriscava até dançar. Mas, diante do Alzheimer, que o deixava muitas
vezes sem condições de apreciar tais coisas com a intensidade que gostava e queria,
ele passou a pensar também na sua partida. Por vezes, falou às filhas: não
contassem com ele para o aniversário de oitenta anos que planejavam para o ano
seguinte, pois ele mesmo não iria. Claro, aquela festa foi cancelada. Mas festa
boa de verdade era o meu pai.
Nunca tive medo da morte, mas quando
penso nela, me vem a ideia de desperdício, de coisas que não fizemos, nem
conseguiremos mais fazer. Chega um dia em que temos que escolher. O que é o
mais importante para nós ou o que não gostaríamos, de jeito algum, de deixar de
ter feito, escrito ou dito nesta vida. Outros velhos planos de “um dia...”,
melhor talvez nem tentar. Passou.
Entretanto, a ideia da má velhice
sempre é um incômodo íntimo. A perda crescente da memória, dos movimentos, da
disposição, da utilidade e do próprio orgulho é lamentável. Durante anos,
assisti a personalidades renomadas e festejadas, pessoas que aprendi a admirar
na minha adolescência e juventude, definharem, serem esquecidas, confessarem as
suas dores e a sua sensação de incompreensão daquele “outro mundo” que surgira
e que nada mais tinha a ver com o “seu mundo”, aquele lugar seguro no qual
cresceu, contribuiu e chegou a protagonizar.
Os familiares, pelo apego natural,
desejam a eternidade para seus pais, muitas vezes por não entender que alguns
estão vivos apenas porque não morreram. Parece óbvio, mas não é. Um dia, essas
pessoas perdem as referências de toda uma vida. Os pais, irmãos, amigos,
colegas continuamente cumprindo a sua travessia. Os seus programas de TV,
ídolos, os autores e compositores preferidos, aqueles bares ou restaurantes
onde encontrava seus amigos mais queridos, tudo, tudo desaparecendo com o “seu”
mundo. Difícil não se perguntar o que resta para você, quando será a sua vez, o
porquê de ainda estar aqui... Um vazio que se torna ainda pior com a coleção de
“não possos” que os mais próximos lhe impõem “por amor”: não posso beber,
fumar, comer aquele prato predileto bem salgado ou bem doce, sair sozinho... Os
“não posso” são tão cruéis quanto os “não consigo”, cada vez mais frequentes,
dia a dia, aumentando uma enfadonha lista de inutilidades e frustrações. Sim, a
vida é o exercício de perder e a morte não assusta tanto àqueles cuja vida pode
não ter mais sentido algum. Temos que aprender a viver, tanto quanto a morrer.
Fiquei pensando, durante a leitura da sua crônica, na partida da minha mãe. Foi silenciosa e triste. Não queria partir e chegou a pedir a Deus para ficar mais um tempo ao nosso lado. Eu tinha vinte oito anos e não sabia o que fazer com aquela dor pungente.
ResponderExcluirA perda do ente querido é sempre esmagadora. Ninguém nunca sabe o que fazer, simplesmente, por que não há nada a ser feito. O que nos cabe e ficar em pé, contribuir para essa passagem difícil de desapegos e sentimentos. Transformar a gratidão, o amor, em luz, o que nos auxilia a manter o coração tranquilo e favorece uma travessia solar para aquele(a) que partiu para nascer novamente entre as estrelas.
ExcluirSempre maravilhoso ler suas crônicas!!
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