Arievaldo Vianna não era apenas um homem, mas um sonho.
Para alguns, um quixote, um quaresma, uma
sherazade de calças, um fabulador de voz grave e declamante, com seu colete de
couro a berrar suas histórias em palcos naturais das calçadas, das praças, dos
postes, numa delirante genialidade quase beirando à dulcíssima loucura, como
alguns outros com quem dividia a sua mala de romances e baú de gaiatices.
“No ano sessenta e sete/Do outro século
passado/Nasci naquele recanto/E fui por Deus inspirado/A beber daquela
fonte/Perto do reino encantado.”
E bebia e se banhava, de quase se afogar,
dessa fonte de trovadores, tocadores, violeiros, sanfoneiros, bumbas-meus-bois
e, claro, à lamparina, na rede ou em alpendres, ou nas manhãs azuis, sobre o
tapete da bagaceira de engenho, em meio à capoeira, à voz alta, dos folhetins
de cordéis, “sua leitura de primeira hora”.
O bravo menino sertanejo do sítio Ouro Preto,
alheio às necessidades que a vida lhe trouxe para fazer-se forte, crescia
assim, imerso entre a roça e o mundo fantástico: beijocador de princesas, amigo
de reis, escalando muralhas de castelos, desafiando dragões, assistindo a
gargalhar muito às pelejas de demônios com cangaceiros.
Quem diria que essa tripinha de gente
“desasnada” pela leitura da vó Alzira se criaria poeta, ilustrador, fanzineiro,
radialista, publicitário, xilogravurista, colecionista, historiador, biógrafo,
capista, editor, pitaqueiro, amigo de todos... e alguém a quem as letras
brasileiras deveriam tanto?
Quando nos encontrávamos, era uma grande
alegria, e se eu não pedisse arrego, não me deixava ir. Num galope à beira-mar
atropelava uma história com uma pesquisa, uma leitura com uma piada, uma
reclamação com uma proposta editorial que iria nos enriquecer a todos... Mesmo
quando depois confirmava: “Minha mulher chegou à triste conclusão de que eu não
sei vender a minha arte, não nasci para ganhar dinheiro. As pessoas me procuram
e eu sempre cobro muito abaixo do que deveria”.
Meses mais novo do que eu, tinha no falar – e
eu o admirava por isso – uma extrema autoridade, uma altivez, mas uma
autoridade legítima, uma altivez não pedante, de quem sabe e que transmite esse
saber, não o ocultando sovinamente como se fosse um privilégio, uma dádiva
divinal. Estive com ele em diversas ocasiões distintas e NUNCA o vi se gabar de
nenhum dos prêmios que recebeu, das inúmeras publicações e dos livros que vendia
em editoras nacionais, de entrevistas de toda parte do país das quais era
convidado. Sabia o amigo Arievaldo, por ser ele um dos grandes, que os prêmios
são apenas reflexos e consequências daquilo que fazemos e do que realmente nos
importa. Para os fracos e os pequenos, tais desnecessários reconhecimentos
podem se tornar armadilhas de espírito. Arievaldo não precisava deles. Era um
artista!
Militava na educação, na leitura, nas artes
populares e sertanejas. No palco, falava desenvolto, cheio até a tampa de histórias
para contar. Criativo, inteligente, impulsivo e impossível.
Agora, dia 30 de maio de 2020, os quase anjos
João Grilo, Pedro Malasartes e o Cancão de Fogo, sob a bênção de São Francisco,
desceram dos céus em busca do menino grande Ari e o levaram para se assentar ao
lado de Patativa, Santaninha, Leandro Gomes de Barros, Alberto Porfírio, Leota
e Ribamar Lopes numa conversa que se já era sem fim, agora é que não se acaba
no meio desse sereno de estrelas do cordel, a literatura mais genuína e brasileira
de nosso Brasil.
Nossa gratidão, irmão Arievaldo, príncipe do
cordel cearense.