Tem
épocas em que o excesso é o mesmo que falta, de tanto que temos nos invade um enorme
vazio de ausência e morte. Nada nos faz felizes, esse bicho arredio que brinca de
esconde-esconde conosco o tempo inteiro. Então saí em busca do novo, mesmo
ainda tendo muitos à disposição, intactos, ainda com o cheiro de madeira da
estante (cada um tem sua droga, umas fortes; outras, simples placebo).
Um
volume marrom escuro, bastante amarrotado, com riscos e brancos de uso; desgastes
comuns de quem, por amor ou ódio, o pegou de jeito, lendo e amassando junto ao
peito ou carregando em sovaco transporte afora... A cor surrada, escurecida ficando
clara, se mostrou ser apenas um cartonado de proteção, sóbria... Era, na
verdade fora, uma edição comemorativa de 25 Anos da Editora, por baixo das abas
de cartolina grossa a pérola brilhante do novo: a capa de tecido parecia ter
sido vislumbrada pela primeira vez desde que saiu da casa editorial.
Eu
mesmo andava bastante alquebrado de tantas dores, as velhas e agravadas chagas
da alma, que carregamos desde sempre fingindo normalidade... Também as dores
físicas da
idade
e mal cuidados (desenvolvi o triste lamento de culpar sempre este tempo de pandemia:
se gordo porque fiquei muito em casa, se triste devido ao medo e angústia minha
e dos outros ao derredor; as velhas, úteis e belas desculpas verdadeiras de sempre).
Mas
nada como o ‘Amor, de novo’, não é mesmo!? Virei cuidadoso a capa sóbria, austera
mas fina e gasta, e a foto em preto-e-branco da velha escritora, após um texto que
seria da ‘orelha’ explicando sem dizer tudo, texto de homenagem da autora a
outros que percorreram aquelas mesmas surradas veredas de sentimentos já quase
esquecidos, também os agradecimentos (antes tão comuns, hoje tão raros nos
livros e na vida), um
belo
poema de W. B. Yeats: “Memórias: Uma tinha beleza/ E duas ou três tinham charme/
Mas charme e beleza eram nada/ Porque a erva da montanha/ Não mantém a sua
forma/ Onde a lebre esteve deitada”.
A
frase de segunda epígrafe da própria autora nos alerta: “Estou amando outra
vez, coisa que nunca quis...” Pronto, eu também estava prontíssimo para amar,
senão amor de verdade, carnal, mas daqueles dos quais somos povoados durante a
vida inteirinha, morno, esperançoso e triste... Frágil, volúvel, desses que não
resistem ao próximo flerte.
Mas
para não correr riscos parti para a negociação com o amigo vendedor, saí de fininho
rumo aos também maltratados bancos da Praça da Gentilândia.
“Fácil
pensar que aquilo era um quarto de despejo, silencioso e abafado numa cálida penumbra,
alguém veio à tona para afastar as cortinas e abrir as janelas. Era uma mulher,
que em passos rápidos saiu por uma porta, que deixou aberta. Assim revelado, o quarto
estava sem dúvida cheio demais.”
Fechei
de imediato e volume e saí para comemorar, meus cômodos repletos de tralhas acumuladas,
que me impediam de vagar com leveza pela vida... Após duas voltas na praça,
evitando olhar para os frequentadores dos bares, que sempre há um conhecido convidando
para uma cervejinha (mas ainda era terça-feira), resolvi rumar impunemente para
casa, de onde prometi somente sair após me redescobrir: novamente amando.
construção maravilhosa. aplausos
ResponderExcluirSempre ebriamente lúcido e feliz na escrita de momentos cheios de vida e humanismo - esse tão nosso D. Pedro
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