domingo, 14 de maio de 2023

"Zenaide", de Raymundo Netto


Nesta foto, a Zenaide tinha apenas 18 anos. Oito anos depois se casaria e, no ano seguinte, ingressaria em um panteão imaginário historicamente consagrado quase na mesma harmonia ao de fadas, ninfas, deusas ou coisas assim, e que, como Deus, traduzimos apenas em uma única sílaba: mãe! Assim como rezam as mitologias, a renúncia e o sacrifício são as tônicas dessas aventureiras – não são todas a embarcar nesta aventura, claro.

Minha mãe, antes de ser mãe, era uma mulher. Como qualquer uma, tinha seus sonhos, anseios, medos e incertezas. Uma vez que eu não conheci essa moça da fotografia, não posso assegurar o que passava pela sua cabeça. No entanto, pude, sim, anos depois, construir-me como ser à sombra desse mesmo sorriso.

Quando criança, na escola, era comum nas festas das mães nós declamarmos poesia, cantarmos músicas ou ensaiar esquetes no Dia das Mães. Não me lembro de ela participar de alguma. Era dentista. Seus pacientes a esperavam. Ela não poderia estar presente. Lembro-me de uma ocasião em que ela pediu para que papai ali estivesse, pois a minha irmã mais velha, a Alice, iria apresentar a canção “Mãezinha Querida” em sua homenagem.

Ela também não ligava muito para datas, convenções, simbolismos. Dia das Mães, aniversários, Natal, nada disso tinha para ela essa relevância que há muito se propaga, principalmente pela necessidade de fomentar o comércio. Cresci assim também, acreditando na importância de todos os dias, sem distingui-los, sem enaltecê-los, a não ser quando necessários para provocar reflexão e não para lucrar e/ou procurar razões para se embebedar ou comer de graça em festas. Mesmo assim, como uma tradição de família, não havia um aniversário em que não fossemos acordados na rede ou na cama com sua voz carinhosa, cantando: "Hoje é dia de seu aniversário... Parabéns, parabéns..."

Minha mãe foi uma criança e adolescente diferente. Há quem diga ter “espírito velho”, cheia de responsabilidades familiares – tinha 9 irmãos e sendo uma das mais velhas, ajudava a mãe a tomar conta dos mais novos (e é até madrinha de alguns deles) –, além de auxiliar na produção de iguarias para o “Bar O Mendonça”, de seu pai, localizado em frente à Praça da Polícia, no Centro, e ministrar aulas de reforço a crianças para ganhar um extra – muitas vezes o fazia de graça.

Li, uma vez, em escritos poéticos de sua adolescência – tinha uma letra linda –, mensagens ao seu Jesus, apresentando-se, na pureza da alma, de seu desejo de ser útil ao próximo, de servir às pessoas. Talvez por isso tenha escolhido, primeiro, o ofício de professora (1959), e depois a de dentista (1964). Mais tarde, passaria o resto da vida em missão sacerdotal, acumulando uma família imensa a atender, a acolher, a amar.


Formada professora pelo Instituto de Educação do Ceará (1959)


Tive o privilégio, durante nossa convivência, de ouvir de sua boca, em horas perdidas à mesa do café ou do almoço, algumas de suas histórias, ou mesmo de assisti-las presencialmente durante anos, muitas vezes alternadas por cantorias de músicas do passado.

Eu sempre conversei muito com ela, o que mudou nos seus últimos anos. Às vezes, ligava para mim “porque seu pai quer saber de você”. E quando comentavam para ela sobre eu ser muito ausente, dizia “Ele é artista”. Para ela, eu “ser artista” justificava o meu comportamento, minhas anormalidades (e fragilidades) e discursos extravagantes. Mas uma coisa é certa: ela podia até não aceitar ou entender, mas se divertia muito, e eu adorava vê-la gargalhar das minhas baboseiras diante da mesa de família repleta de filhos barulhentos.

Até hoje eu guardo uma caixa de lata com centenas de tampas de adoçante. Comecei a juntá-las há anos e não sei bem o porquê. Já me perguntaram e eu geralmente digo que esta é a minha única chance de ingressar no Guinness Book, porque acho muito difícil que alguém quebre um recorde como esse tão inútil. Entretanto, o curioso aqui é relatar não ser eu o único autor desta façanha. Minha cúmplice é minha mãe. Mesmo durante os seus últimos anos, quando nos distanciamos mais, ela me ligava para eu pegar ou mandava por algum irmão um saquinho com tampinhas de adoçante que ela não deixava jogar no lixo e as guardava: “São para o Netto”.

Ela nunca me perguntou o porquê de eu guardar essas tampinhas, provavelmente nem via qualquer importância naquilo, mas abraçava a minha causa, assim como fez em toda a sua vida, estando sempre ao meu lado, sem esperar nada em troca, sem me cobrar atenção, se esforçando naquilo que ela dizia ser muito difícil: ser mãe!



Uma vez chegou, preocupada, até a reunir os seis filhos, apenas porque alguém havia dito a ela que nunca a vira beijando os filhos e, portanto, por isso, não seria uma boa mãe. Realmente, mamãe não era de beijar. Terminada a reunião solene, finalizamos: Ela era a melhor mãe do mundo!

Quando do lançamento de meu primeiro livro, no tempo livre, ligava para toda a família, imensa, convidando-a. Dizia, com a honestidade e inocência de sempre, “Eu não li o livro, mas alguém leu e me disse que até chorou. Ora, se fez chorar é por que deve ser bom, né?”

Hoje, durante um café na Padaria Romana, eu vi uma velhinha sorridente, cercada de familiares, filhos e netos, auxiliando na sua marcha difícil, comemorando o Dia das Mães. Aquilo me fez pensar e me doer: “não cheguei a ver a minha mãe assim, velhinha. Foi-se cedo demais. Cedo demais.”

Sentei-me aqui e escrevi esse relato. Apenas um pouco do que era minha mãe, entre tantas coisas que já escrevi e que irei escrever para tentar não esquecê-la (infelizmente é possível) e mantê-la por perto, pois, como naquela canção – ela cantava tão bem: “Eu cresci, o caminho perdi, volto a ti e me sinto criança. Se eu pudesse eu queria, outra vez, mamãe, começar tudo, tudo de novo.”


E para ela, a música que tanto gostava de cantar neste dia:


https://www.youtube.com/watch?v=suUvAm56J4Y







 

11 comentários:

  1. Dona Zenaide é linda! Quanto amor
    Para com o filho artista! …e as tampinhas …EMoCIONANTe

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    1. Olá, Edna. Muito obrigado pela sua leitura e retorno. Abraço.

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  3. Que lindo texto! E o parabéns que ela cantava eu gosto muito. Já até cantei para alguns amigos. O danado é que a partir de : " E que em data igual a esta, haja sempre a mesma festa, " não estou lembrando mais. Parabéns!!!

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    1. "...Cada um renovando os votos que hoje traz de mil venturas e de paz..." É isso. Muito obrigado.

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  4. oi meu amigo. que belo relato. mesmo sorriso que você guarda. também percebo os dias, cada um deles, importantes, se não para mim, para alguém. raro comemorar algum em especial. como não ser sua mãe rara, sendo você o que é?

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    1. Amiga Lucirene, grato pelas palavras gentis. A recíproca é verdadeira. Abração.

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  5. Raymundo Netto!
    Que relato delicado e forte. Você traduz nessa narrativa, a imensa humanidade que lhe preenche o coração.
    Parabéns e gratidão

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    1. A mesma humanidade que percebemos nessa nossa aluna mais dedicada do CPLI. rsrsr Abraço, amiga Malvinier.

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  6. Na lata, Raymundo. Texto Graciianesco!
    Túlio Monteiro.

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