Para Narcélio Limaverde
Era uma segunda-feira, dia de almas e
de sapateiro. Sentava num dos bancos da praça do Ferreira, o que fica em frente
ao cine São Luiz, e, lançando pipocas aos pombos, nem acreditava: o governo
estadual comprara da família de Luiz Severiano Ribeiro o prédio do cinema, atualmente
o mais antigo inda em pé na cidade e, sem dúvida, um dos mais bonitos do país.
Até trasanteontem, ameaçavam vesti-lo de manto neopentecostal ou de plantar na
sua boca de cena a tribuna da comédia dos edis, dois pecados mortais.
Hoje,
finalmente, a esperança tocava os carrilhões deste coração malamado. Foi quando
vi surgir ali, dobrando a frustrada rua do Ouvidor cabeça-chata, um garoto, o
Narcelinho da avenida do Imperador. Estranho: vinha de bermuda e chinelinha,
mas vestia um paletó de alpaca. Debaixo do braço esquerdo trazia um volume do Tesouros da Juventude, um Almanaque Bristol e um exemplar da
raríssima Scena muda, revista de
cinema. Na mão direita, um radinho de pilha enamorava o ouvido. Olhou para as
janelas do sobrado do Majestic – como
se estranhasse os cúmplices lençóis alarmando amores clandestinos – e sentou-se
ao meu lado, num formal boa-tarde, se pondo a admirar com certo elã, à João
Ramos, seu reloginho Polono, de corda, que, segundo ele, “tinha até ponteiro
dos segundos”. Não queria crer, e assim mesmo perguntei: “Narcelinho, não me
diga que você veio para assistir a algum filme neste cinema?” Não deu outra.
Era sim! Não tinha pressa, esperaria abrir a bilheteria: “Havia alugado até o
paletó no Cabana, não havia? Ademais,
não sou nem a Fátima Miris para ficar de troca-troca de roupas.” Disse também
que vinha da aula de datilografia do seu Quincas, que era parede e meia com sua
casa, e não tinha mesmo o que fazer. Sua irmã, a Reine, havia lhe pedido para
acompanhá-la até o Patronato Nossa Senhora Auxiliadora, pois como não tardava o
dezembro, haviam começado os ensaios e preparativos para o famoso pastoril das
irmãs Breves, e ela interpretava um dos papéis. “Na saída, ainda cheguei a
tirar onda com o jumentinho do seu Antônio verdureiro, responsável por levar no
lombo o sagrado bonequinho Jesus.” E cadê os seus amigos? Não tem amigos? “Eu?
Tenho ibope, sou muito popular. Aliás, tenho tantos amigos que nem conheço
todos! E, afora o cinema, eu gosto mesmo é do rádio... Eu amo o rádio!” Quando
perguntei que programas costumava ouvir, respondeu-me: “‘Coisas que o tempo
levou’, ‘Bazar de música’ e a ‘Hora da Saudade’, todos da perrenove (PRE-9).” Mas
quem é que apresenta esses programas? “O speaker?
É o papai! Para ele, o rádio nem é mais trabalho, mas um vício!”
Tinha que
ir-me. Não sabia o que fazer com Narcelinho, afinal, o menino teria que esperar
muito até que o cine São Luiz retornasse as suas atividades. Parecia não se
importar. Enquanto não abrisse, ele bateria perna, encontraria outros meninos,
iriam ao parque Shangai da praça José de Alencar, à Feira da Mocidade da praça
do Liceu, à Festa da Imprensa no Passeio Público, passariam no La conga para alugar calções de banho e
pulariam no mar de Iracema ou mesmo, na pior das hipóteses, ficariam naquela
praça, acompanhando os casais morcegando nos bondes: “Raymundo, não tenho
pressa para ir a canto nenhum, afinal, a gente enverga, mas não quebra! Tudo o
que quis na minha vida, felizmente eu consegui. Minhas maiores paixões e amores
nunca me abandonaram, assim como eu nunca os abandonei. Trabalho há anos
naquilo que me dá sentido à vida, e se me perguntassem, faria tudo de novo. Só
espero e torço para não ser por minha voz, no ar e ao vivo, o anúncio do fim do
mundo.
*resumo adaptado do texto original
publicado em Crônicas Absurdas de Segunda
(2015), uma homenagem ao querido amigo e radialista Narcélio Limaverde, falecido em 26.01.2022.