segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

"Esperança", de Raymundo Netto para O POVO

 


Ao contrário do que o nome insinuava, Gastão era um genuíno “mão de vaca”. Aos mais próximos, perguntassem pelo seu dinheiro, respondiam: “nem a cor”.

Esperança, quando moça, solteira e sonhadora, deixou-se levar pelos ouvidos: ela tinha tudo para conquistar aquele coração ainda virgem e distraído do mundo. Afinal, o rapaz até que era bem-apessoado e, mexericavam, apesar da tímida, humilde e descuidada aparência, possuía fortuna. Dito e feito. Gastão se rendeu, não fácil, aos encantos das pernocas de Esperança, pendulares na calçada do armarinho “Kerim”, negócio herdado de família que, a propósito, é um nome turco cujo significado é "Generoso".

Entretanto, contrariando os contos de fada, nos quais o “felizes para sempre” vem logo após o casamento, neste, de Gastão e Esperança, mesmo antes dele a coisa já descia ladeira abaixo. Para começar, Gastão exigiu que os pais de Esperança bancassem tudo, da igreja à lua de mel, pulando a festa, que só servia para encher o bucho e a cara de oportunistas. “Gastar com festa para quê?” Porém não abriu mão dessa “economia”, levando-a consigo para as núpcias em imprevisto motel barato, deixando os pais de Esperança na maior penhora.

Retornando de uma lua sem queijo nem mel, encontramos uma Esperança abatida, magra e com imensa dificuldade de se adaptar à rotina imposta pelo marido. Faltava de tudo naquela casa. Às vezes, nem onde sentar. Quando reclamava, ele dizia: “Para quê gastar com mobília? Precisamos de espaço.” Mas o pior mesmo era a ausência de água encanada. Sempre que precisasse, ela teria que pegar água do poço no quintal. O barulho estridente das roldanas dava-lhe nos nervos. Gastão, debruçado em suas obsessivas contas, acompanhava esse movimento diário: “Lavando a louça do café... aguando as plantas... lavando a casa... lavando a louça do almoço... tomando banho... preparando o meu...”

Esperança se queixava: estava cheia de calos nas mãos, sentia dores nas costas, aquilo lhe tomava o dia inteiro, não poderiam contratar uma empregada? “Gastar com empregada para quê? Uma estranha em casa? Só se for para nos roubar!”

Aos domingos, na hora do almoço, Gastão dizia ser tomado por uma súbita saudade dos sogros e se convidava à mesa, mesmo quando Esperança ficava em casa: “Gastar com almoço para quê? A comida da sua mãe é incomparável.”

Durante anos, Esperança haveria de continuar a sua labuta exaustiva de puxar a balde a água da casa, diante das desculpas prontas do marido. Queria vestido novo para ir à missa: “Gastar para ir à missa? Deus está aqui também!” Queria ir à cabelereira: “Gastar com cabelos? Corta bem curtinhos... eu gosto!” Queria viajar: “Gastar com viagem para que se vai voltar sempre?”. E se queria comer alguma coisa diferente, ele liberava uma caixinha de creme de leite e a despejava no que estivesse mais perto, fosse pão, ovo, macarrão... Sobretudo, Gastão também achava um absurdo as contas da farmácia e, tendo detectado um “sopro no coração”, decidiu não gastar com remédios e médicos. Então, após receber cobrança de fornecedor, teve um piripaque e defuntou ali mesmo, prostrado sobre o seu venerado livro-caixa. A notícia se espalhou, os familiares correram ao local e encontraram Esperança apática ao lado do marido morto. Todos demonstravam um dissimulado interesse, choravam, abraçavam a viúva e se ofereciam para ajudar nos preparativos dos rituais fúnebres. Foi quando Esperança pegou um velho surrão sujo e com esforço colocou o morto dentro. Fechou o saco, o arrastou ao quintal, o jogou dentro e bem no fundo do poço e mandou um pedreiro selar a sua boca de uma vez por todas. Diante do pasmo geral, a mulher, suando em bicas e batendo a sujeira das palmas das mãos calejadas, asseverou: “Gastar com buraco para quê?”

Na semana seguinte estava ela, com os pais, mordendo ávida e feliz um croissant duro em um café francês. C’est la vie




7 comentários:

  1. Gastão rima com surrão que rima com cacimbão. Um dos finais mais justos que vi nesses últimos 67 anos.

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    1. Hahahaha Eita, entrou no Guiness Book do Tião? Que recorde maravilhoso... Valeu, amigo.

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  2. Que nojento esse Gastão. Merecia nesmo o cacimbão chumbado. Kkkk

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    1. Não posso nem dizer que não concordo, né, Zélia? rsrsrs E a Esperança a morder um "pão duro" francês? Que acha?

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    1. Sempre há, profa. Alcilene. Que alegria "vê-la" por aqui. Grande abraço.

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