segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

"Gota D'Água", de Raymundo Netto para o vento


Tu, tu, tu

A torneira pinga, goteja, gotosa, gotejante, artrítica.

Num lamento perdura, dura, mistura candura e fura

Tanto bate até que fura.

Tu     Tu    Tu 

A torneira pinga goteirante, entorna a gota gotílica, gótica.

E no rumo da pia, toma prumo: se esguia rasto de rio

Se eu rio, sorrio, só rio.

Tu          Tu          Tu

A torneira pinga, insiste, goteia, goturva, gotante

Deslizando na pedra, se enreda, se entranha, se esgota

E no ralo, morta, não é nada, gotada, goteira, gota rota.

Tu                   Tu

A torneira pinga pingos d’água, mágoa, solidão.

A torneira pinga   pinga   pingandante

A torneira é como o verso que chora.

Tu


 

"Desejo Secreto", de Raymundo Netto para O POVO


Susanabela nem não acreditava, senão o homem do noticiário insistia: “Papai Noel estará neste domingo no shopping, aquele mesmo pertinho de você!”

Por trás dos olhos arregalados soluçava a duvidar do aparelho de TV: “Ele? Aqui?”

Trazia, nos pouco mais de trinta anos, uma beleza sofrida e esquiva. Após ser largada por Genésio, o único e infeliz amor de sua existência, que a trocou justamente pela irmã, a caçula, decidira largar de vez a sua cidadezinha de sempre e buscar sustento em casa de família na capital, à custa da necessidade, rotinando as únicas prendas de sua vida: varrer, lavar, passar e cozinhar.

Fazia apenas alguns meses. Morava num quartinho reversível dos fundos, ao lado da área de serviço, por trás do tanque. Sem família, sem amigos, sem ninguém, abria mão até dos finais de semana, simplesmente por não ter, ou saber, o que fazer fora dali. Não besta, a patroa a explorava carinhosamente, rasgando-a de cínicos elogios toda vez que a surpreendia passando as roupas no perfeito domingo, de costas para o café da manhã bem-posto, inda quentinho, na mesa de vista para o céu mais azul e livre deste mundo.

Mas naquele domingo não. A patroa acordou de cara emburrada, estranhando a empolgação da empregada no enfeito em tamancos, e o nada de café nem de janela azul.

“É namorado, não é? Olhe, tome cuidado com os rapazes daqui, Susanabela. Só querem mesmo é tirar uma casquinha... E você, me desculpe, é uma tonta!”

“É hôme não, dona Rubi. Deus me alivre. É mais do que isso... é um sonho!”

Não ouvia, pois estava cheia de seus próprios sons. A patroa resmungava: “Serviço bom como este aqui vai ser difícil conseguir outro, visse?”

Susanabela quase abria os portões do shopping. Desfiava conversa com o segurança, os zeladores e taxistas. Mais ansiosa que caldeira de trem, numa felicidade estranhamente sincera, perguntava: "Vocês não vão falar com o Papai Noé, não?"

Riam-se. Entre eles, apontavam para ela, meneavam a cabeça: “Não pode ser desse mundo.”

Com pouco, a fila se esticou de crianças e de pais sonolentos de boa vontade. Ao fim, chegava ele, o tal Noel, passando por ela num acolchoado encarnado e luminoso sem dar-lhe a mínima atenção, rumo ao seu trono. Ela, a primeira da fila, postava-se passiva e trêmula, enquanto as ajudantes do velhote lhe perguntavam pelos filhos: Não os tinha.

Daí, o canastrão, desconfortavelmente sentado na poltrona decorada, pôs-se ao papel, lançando um afônico Hou-hou-hou e chamando Susanabela: “E então, minha filha, o que você quer de seu Papai Noel?” Era o que faltava. Susana livrou-se dos tamancos, saltou em seu colo, beijou o blush de seu rosto e, num abraço caloroso e fatal, sussurrou-lhe ao ouvido: “O senhor se alembra quando eu pedi uma irmãzinha? Agora quero que você morra ela.... Morra ela, pra mim, Papai Noé, por favor!” 




 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Lançamento "Ele", de Mailson Furtado Viana (10.12)


 

LANÇAMENTO

ELE, poema-livro, de Mailson Furtado Viana

Mediação: Vinicios Ferraz

Data: 10 de dezembro, às 19h

Local: Livraria Lamarca (Av. da Universidade, 2475, Benfica)

Sobre ELE

Um abordar biográfico daquele(s) que não se conta(m), e, por vezes, nem se sabe(m): a história d’ele – a ser tantos e nenhum. Um poema-livro (ou uma crônica, também) sobre o viver de um cidadão comum, preso a flutuar sobre seus dias e lugares, inerte ao próprio destino, dito e visto em/como terceira pessoa.

Numa teia de influências e experimentações, o livro se embaralha entre verso, prosa e insights cênicos. Articula-se numa arquitetura epopeica de clássicos ocidentais junto ao hibridismo de movimentos artístico-literários desses dias (e de sempre), em tentativas poéticas vezes seca, em tom quase “apoético”, vezes humorado, vezes inerte, vezes lancinante, vezes qualquer-coisa, no buscar tangente do encontro ele/eu. E assim (mais uma vez): o sertão (cravado também na urbe), ainda mais pulsante, puramente verborrágico, e em carne-osso.

 

Sobre o Autor

Vencedor do 60º Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro em 2018, nas categorias Livro do Ano e Poesia com sua obra independente À Cidade. Em Varjota, Ceará, cidade onde sempre viveu, fundou a CIA teatral Criando Arte, em atividades desde 2006, onde realiza atividades de ator, diretor e dramaturgo, além de produtor cultural da Casa de Arte CriAr.

Graduado em Odontologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), possui obras publicadas em jornais, revistas e antologias no Brasil e Portugal e mais de 10 textos encenados no teatro. Administrou o blog Improvisos, de 2009 a 2016, e foi membro-fundador do Grupo Literário Pescaria, com atividades de 2013 a 2016, onde editou e diagramou o jornal Pescaria e a antologia O Cambo.



segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

"Esperança", de Raymundo Netto para O POVO

 


Ao contrário do que o nome insinuava, Gastão era um genuíno “mão de vaca”. Aos mais próximos, perguntassem pelo seu dinheiro, respondiam: “nem a cor”.

Esperança, quando moça, solteira e sonhadora, deixou-se levar pelos ouvidos: ela tinha tudo para conquistar aquele coração ainda virgem e distraído do mundo. Afinal, o rapaz até que era bem-apessoado e, mexericavam, apesar da tímida, humilde e descuidada aparência, possuía fortuna. Dito e feito. Gastão se rendeu, não fácil, aos encantos das pernocas de Esperança, pendulares na calçada do armarinho “Kerim”, negócio herdado de família que, a propósito, é um nome turco cujo significado é "Generoso".

Entretanto, contrariando os contos de fada, nos quais o “felizes para sempre” vem logo após o casamento, neste, de Gastão e Esperança, mesmo antes dele a coisa já descia ladeira abaixo. Para começar, Gastão exigiu que os pais de Esperança bancassem tudo, da igreja à lua de mel, pulando a festa, que só servia para encher o bucho e a cara de oportunistas. “Gastar com festa para quê?” Porém não abriu mão dessa “economia”, levando-a consigo para as núpcias em imprevisto motel barato, deixando os pais de Esperança na maior penhora.

Retornando de uma lua sem queijo nem mel, encontramos uma Esperança abatida, magra e com imensa dificuldade de se adaptar à rotina imposta pelo marido. Faltava de tudo naquela casa. Às vezes, nem onde sentar. Quando reclamava, ele dizia: “Para quê gastar com mobília? Precisamos de espaço.” Mas o pior mesmo era a ausência de água encanada. Sempre que precisasse, ela teria que pegar água do poço no quintal. O barulho estridente das roldanas dava-lhe nos nervos. Gastão, debruçado em suas obsessivas contas, acompanhava esse movimento diário: “Lavando a louça do café... aguando as plantas... lavando a casa... lavando a louça do almoço... tomando banho... preparando o meu...”

Esperança se queixava: estava cheia de calos nas mãos, sentia dores nas costas, aquilo lhe tomava o dia inteiro, não poderiam contratar uma empregada? “Gastar com empregada para quê? Uma estranha em casa? Só se for para nos roubar!”

Aos domingos, na hora do almoço, Gastão dizia ser tomado por uma súbita saudade dos sogros e se convidava à mesa, mesmo quando Esperança ficava em casa: “Gastar com almoço para quê? A comida da sua mãe é incomparável.”

Durante anos, Esperança haveria de continuar a sua labuta exaustiva de puxar a balde a água da casa, diante das desculpas prontas do marido. Queria vestido novo para ir à missa: “Gastar para ir à missa? Deus está aqui também!” Queria ir à cabelereira: “Gastar com cabelos? Corta bem curtinhos... eu gosto!” Queria viajar: “Gastar com viagem para que se vai voltar sempre?”. E se queria comer alguma coisa diferente, ele liberava uma caixinha de creme de leite e a despejava no que estivesse mais perto, fosse pão, ovo, macarrão... Sobretudo, Gastão também achava um absurdo as contas da farmácia e, tendo detectado um “sopro no coração”, decidiu não gastar com remédios e médicos. Então, após receber cobrança de fornecedor, teve um piripaque e defuntou ali mesmo, prostrado sobre o seu venerado livro-caixa. A notícia se espalhou, os familiares correram ao local e encontraram Esperança apática ao lado do marido morto. Todos demonstravam um dissimulado interesse, choravam, abraçavam a viúva e se ofereciam para ajudar nos preparativos dos rituais fúnebres. Foi quando Esperança pegou um velho surrão sujo e com esforço colocou o morto dentro. Fechou o saco, o arrastou ao quintal, o jogou dentro e bem no fundo do poço e mandou um pedreiro selar a sua boca de uma vez por todas. Diante do pasmo geral, a mulher, suando em bicas e batendo a sujeira das palmas das mãos calejadas, asseverou: “Gastar com buraco para quê?”

Na semana seguinte estava ela, com os pais, mordendo ávida e feliz um croissant duro em um café francês. C’est la vie




quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Lançamento "Emílio Hinko, arquiteto - o último eclético", de Romeu Duarte (03.12 no Cantinho do Frango)


LANÇAMENTO

Emílio Hinko, arquiteto - o último eclético:

arquitetura e poder em Fortaleza

de Romeu Duarte

Ilustrações: Domingos Linheiro

Data e Horário: 3 de dezembro de 2021, às 19h

Local: Cantinho do Frango (Torres Câmara, 71, Aldeota)

 

SOBRE A OBRA:

O livro Emílio Hinko, arquiteto - o último eclético: arquitetura e poder em Fortaleza, escrito e ilustrado respectivamente pelos arquitetos Romeu Duarte e Domingos Linheiro, aborda a vida e a obra do ilustre profissional húngaro, nascido em Budapeste em 1901, o qual, desde 1929, quando aqui chegou, vindo de Belém do Pará, fixou residência em Fortaleza, desenvolvendo um punhado de obras que contam um pouco da história de nossa capital. Prefaciada por Lúcio Alcântara, atual presidente da Academia Cearense de Letras, a publicação é acompanhada de um documentário elaborado pelo cineasta Roberto Bonfim, ambos trabalhos produzidos por Augusto César Bastos.

O livro trata da intensa participação de Hinko no ambiente da arquitetura e da construção civil fortalezense durante mais de 50 anos, quando produziu obras de vulto, tais como o Hospital de Messejana, a Base Aérea de Fortaleza, a Igreja das Irmãs Missionárias e a sede do Náutico Atlético Cearense, entre muitas outras, prova de sua íntima relação com as elites políticas e econômicas locais.

Inicia-se com uma biografia do arquiteto, que se estende por sua infância e adolescência vivida na capital da Hungria, seu período de trabalho em Milão, na Itália, sua viagem ao Brasil, de Fortaleza a Belém e, por fim, a Fortaleza, onde faleceu em 2002. No segundo capítulo, como um pano de fundo para a sua atuação, apresenta-se o extenso quadro de mudanças socioespaciais sofrido por Fortaleza nos 73 anos em que o profissional aqui viveu.

De maneira a contextualizar seu trabalho no panorama arquitetônico e urbanístico da época, no terceiro capítulo faz-se uma apresentação da produção dos principais nomes do métier, no Brasil e no mundo, no momento em que chegou a Fortaleza e se estabeleceu profissionalmente.

No quarto capítulo, realiza-se uma leitura analítica de suas obras como uma arquitetura feita para simbolizar e transmitir poder, fruto de suas relações com as elites locais.

A conclusão do livro, de forte cunho pessoal, é escrita ao modo de uma crônica, na qual seu autor discorre sobre a importância da valorização e preservação da obra de Emílio Hinko ao tempo em que denuncia o descaso de nossa sociedade para com a proteção do patrimônio cultural edificado.

Pretendeu-se, com a publicação, lançar luz sobre personagens relevantes, conquanto esquecidos, desconhecidos ou desvalorizados, da nossa arquitetura, bem como dar voz a outros pesquisadores cearenses, destacando a importância dos seus estudos sobre esse assunto, além de ampliar o espectro do acervo edificado a proteger, cada vez mais objeto de um cruel projeto de destruição programada.