“Desaforo! Sacrilégio! Blasfêmia!”
O padre, convidado para celebrar a missa de passagem do morto, horrorizou-se ao
ver que ele, bem deitado e curiosamente sorridente no esquife, estava
absolutamente nu. Elias, amigo fiel de Betinho – esse é o nome do falecido –,
ponderou: “Na vida nada se leva, seu padre. É o desejo dele”.
Pasmo em sua autoridade, o sacerdote enxugou a testa calva com a estola: “Como assim? Quem ele pensa que é?”
“O defunto?”, retornou quase cínico o Elias.
“Ora,
vamos, morto não tem querer, meu jovem”, sendo imediatamente corrigido: “Esse
tem, seu padre, e é ser enterrado nu.”
No velório, poucas testemunhas, apenas uns quatro amigos de boêmia e um maior número de ex-namoradas, amigas e amantes velavam Betinho. Como exige a boa etiqueta funerária, aproximavam-se do caixão, examinavam-no da cabeça aos pés com atenção – e, por vezes, com sinistro entusiasmo – e despejavam lágrimas inconsoláveis. Algumas, a sós com o cadáver, até abraçavam o féretro, como se a tirar a última casquinha do falecido.
“Como morreu?”, perguntavam. “De amor. Nunca amou, mas quando
aconteceu, lhe foi fatal.” Assim, elas puxavam o lenço e o olhar para ele,
debulhando um choro incomum de dor de saudade e, ao mesmo tempo, de traição e
rejeição. Isto para um morto é a morte!
O padre, em meio ao rebanho distraído, pedia forças aos céus para salvar aquela alma da ruína do pecado. Não conseguia nem olhar para aquilo: “Chegar nu à frente do Senhor? Indecência!” Elias insistiu: “Mas, seu padre, e ele não veio de lá assim?”
Mesmo não sendo grande cristão, Elias cumpriu o catecismo básico
imposto na época do colégio e argumentou: “E o Jó, aquele homem da
paciência, lembra? Aliás, o senhor precisa aprender com ele, viu? Pois é, não é em
Jó que encontramos: ‘Saí nu do ventre da minha mãe, e nu partirei. O Senhor o deu,
o Senhor o levou’”.
“Está
repreendido, meu filho! Eu não posso anunciar a vida eterna a esse, a esse... depravado
inconsequente nessas condições. Não posso!”
Enfim, deu-se assim a melódia. Os amigos, doidos para ir ao bar e percebendo que aquela missa não ia sair mesmo, se determinaram: reuniram-se, empunharam as alças do caixão e saíram num cortejo desembestado capela afora em direção ao cemitério.
O padre
inquietou-se com a profanação. Arrepanhou a batina e, agitando a pesada cruz, passou
a perseguir os “sequestradores”, batendo em suas cabeças e conclamando, ali
mesmo, com auxílio de um coroinha sonolento, a cruzada católica do tapa-sexo,
na tentativa de salvar dos infernos a alma do pobre Betinho, aos solavancos
naquele caixão. “Irmãos, fechem esse portão! O campo é santo... santoooo!”, berrava
o padre.
Daí, diante
do portão do cemitério, agora trancado e guardado por um renque de carolas, a batalha
continuou fervorosa. O padre, o coroinha, duas beatas e um bêbado puxavam o
caixão de um lado, enquanto os amigos de Betinho o puxavam de outro,
estraçalhando-o e deixando estatelar o corpo na calçada. Isso não impediu que o
inflamado bate-boca continuasse, cercado por uma plateia anônima de curiosos
que tomava as dores e o partido do padre ou dos amigos de Betinho. E essa zoada
só findou, quando o morto, impaciente com tal indefinição, escalou feito
lagartixa e pulou o muro do cemitério, desaparecendo das vistas assombradas e em
busca, ele mesmo, da sua derradeira e desejada pá de cal, o aceno final de
despedida a esse mundo de gente má e hipócrita.
se divertiu criando essa foi muito...kkk, as pessoas esquecem até de grandes escapulidas após à morte, mas esse caso, mexe com as carolices. muito bom, com a qualidade inerente ao Raymundo
ResponderExcluirEita, você foi ligeira, Lucirene... rsrs Pois é, como eu disse agora: essa diversão no fazer é imprescindível e necessária. E, afinal, o que é a morte?
ExcluirÉ impossível lê algo tão caliente e não comentar,amei que venham outros para tornar minha vidinha monótona mais animada. Abraços garoto.
ResponderExcluirSE depender de mim, pretendo ainda brincar um pouco por aqui. Gostaria de saber quem é você. Aqui me aparece como desconhecido(a). Abraço
ExcluirMas que imaginação fértil a sua... kkkk Muito bom!
ResponderExcluirObrigado, poeta, pela sua gentil leitura. Abração.
ExcluirMuita criatividade dar ao próprio defunto a solução de uma querela que não terminaria tão cedo - iria pra delegacia,depois pra julgamento etc. Como um morto pode descansar em paz desse jeito? Valeu, Betinho!
ResponderExcluirHahahaha O Betinho é daqueles que faz da morte o que fez em vida... curtiu!
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