domingo, 29 de agosto de 2021

"Traição: a tragédia do São Pedro", de Raymundo Netto para O POVO


 O polêmico infortúnio do Hotel São Pedro, edificação em forma de navio, que singra a região desde 1951, e que inaugurou o ramo hoteleiro na orla da cidade, entre outras peculiaridades arquitetônicas e turísticas, é apenas mais um capítulo da nossa Fortaleza distraída e ambiciosa. Uma cidade sem passado, sem rosto, sem futuro possível.

Há quem diga, no azedo discurso nostálgico, idealizado e inútil: “Antigamente as pessoas respeitavam mais o que era antigo”. Isso é uma disparatada ilusão e, para não romantizar mais, outra mentira!

Contamos nos dedos as edificações da cidade construídas no século XIX. As poucas que restam, e muito poucas – por experiência, em breve, ainda menos –, datam do início do século XX, pois que nossos pais e avós, que Deus os tenham e os perdoem, já gostavam mesmo do “novo”, dos “modismos”. Naquela época, patrimônio era apenas uma palavra horrorosa e sem sentido, a não ser para aquela minúscula e sempre poderosa parcela privilegiada que já nasce em berço de ouro (que depois vira patrimônio e até razão de morte em família) e sabe bem o valor que um patrimônio – financeiro, diga-se – tem.

Daí, justamente em 2021, quando o exótico e imponente prédio completa 70 anos de existência e divina resistência, nós fazemos com ele o que a sociedade ignorante, consumista e desperdiçadora faz com os nossos idosos: os reconhecem como inúteis, desprezam a sua história, o seu legado, os seus feitos em vida produtiva e passam a desejar que se vão, que morram logo para não dar mais trabalho e ocupar aquele lugar que poderia ser de outro. Afinal, já viveu demais... e o povo gosta mesmo é de plástico e espelhos!

Vejamos: há 15 anos – acredite, tempo suficiente – teve início o seu processo de tombamento. O que foi feito desde então? Nada! “Deixa cair! Quero é ver!”

Como acontece com outro prédio na cidade, do início do século XX, que, como não poderia ser diferente, pertence a uma família respeitada (leia-se “endinheirada”, nada mais artificialmente respeitador do que se ter muito capital) na cidade. O empresário já afirmou, com toda a sua autoridade (ou boçalidade) política e bancária: “se tombarem, eu derrubo!” Lembremos da inocente canção: “quem tem mais do que precisa ter, quase sempre se convence que não tem o bastante.”

Coincidentemente, desde o início do processo, o São Pedro ficou à deriva diante do esvaziamento dos últimos moradores e do seu desrespeitoso, gradual e acelerado desmonte. Alia-se a isso, a falta de decisão e de ação do Poder Público (uma legislação que treme feito vara verde) e os conflitos de interesses com a família proprietária, irmanando-o com o “Mara Hope”, outro “encalhe” na nossa deflorada Praia de Iracema, a praia dos amores, que devem estar por vir com os escafandristas do futuro buarquiano.

Nos meus inquietantes sonhos, esses concentradores de renda têm a noção de retribuir à cidade e à sociedade – que bem sabem ser explorada a seu serviço – esses patrimônios. Que as grandes construtoras, curiosamente generosas em doações abundantes e decerto despretensiosas durante as campanhas políticas, unidas, usassem desses recursos na solução de casos como esse, quando a engenharia mostra o seu valor. E que os gestores, com coragem e mais atentos aos clamores sociais (e não políticos, partidários e/ou econômicos) e àquilo que a sociedade precisa, mesmo quando não entende ou não sabe, abraçassem essas causas, articulassem parcerias estratégicas e inteligentes, tomassem a frente de campanhas de mobilização de recursos para cumprir e fazer valer o idílico “pertencimento”. E que o nosso Titanic de tijolos, que há quem diga “Nem Deus derruba”, não se choque com o vil iceberg “da força da grana que ergue e destrói coisas belas.”




12 comentários:

  1. muito a concordar com os seus argumentos. se "os retratados donos do poder" lessem, diriam que o nobre escritor é sonhador.o desprezo visível pelo "velho "me faz sentir múmia, só não tenho sarcófago. vamos rir. o que nos resta . parabéns, amigo.

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  2. Quero expressar minha indignação com o fato e com a consciência do fortalezense diante o assunto . Mesmo que sejam preservados, esses imóveis rapidamente são degradados e esquecidos . Exemplo disso é o Estoril, não mais explorado pelo setor privado encontra-se agora abandonado . As casas de cultura da ufc também foram vítimas ao virem emergir prédios desproporcionais ao seu entorno , fato corrido dentro da universidade , o que torna-se mais estarrecedor .

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  3. Dando toda a razão ao articulista, ainda não estamos considerando o debacle do inesquecível Iracema Plaza Hotel e da histórica edificação em que funcionava, o histórico Edifício São Pedro. Ação Civil Pública promovida pela 3a. Promotoria de Justiça Especializada em Meio Ambiente e Planejamento Urbano que corre na 12a. Vara da Fazenda Pública, Processo 0808176-55.2021.8.06.0001 enfrenta, com maestria, a covardia de interesses privados inconfessáveis de apaniguados da Oligarquia Política que domina a gestão municipal já se contando três mandatos incluindo o atual.

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  4. Vale lembrar que, desde 2018, através de outra Ação Civil Pública, a mesma Promotoria vem travando na mesma Vara da Fazenda Pública o combate pela preservação do inesquecível Iracema Plaza Hotel / Edifício São Pedro. O número deste processo mais antigo é 0164672-53.2018.8.06.0001.

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  5. Com o desprezo dos livros e da leitura de artigos contando a nossa história, o que será de nós? Ainda bem que há espaços para que pessoas como você grite pelo que importa! Bravo!

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  6. Ray, a cultura patrimonialista do poder público brasileiro protege abertamente o capital.

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  7. É lamentável. Morei na Praia de Iracema boa parte da minha vida, por isso o São Pedro é uma parte da paisagem da minha juventude. Queria muito, como muitos fortalezenses, vê-lo vivo, incorporado à vida cultural da cidade.

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  8. Memória de minha infância, quando ia da casa de minha avó para a praia de Iracema e passava por lá. Uma cidade sem lembrança é um povo sem história, parvos diante de novidades B de discutível design.

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  9. Muito triste essa realidade dos não tombamentos,e quando tombados abondonados.Lembro à primeira vez que fui à praia de Iracema, fiquei impressionada com a morte de um prédio em plena a beira mar

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  10. Excelente texto. Preciso, pontual e para nossa reflexão. Uma cidade que derruba seu passado sem qualquer culpa. Que futuro teremos?

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  11. Posso ser franco? Não é bonito, não tem estilo algum, não é funcional nem prático, o que o sustenta são nossas orgulhosas lembranças, e quando partirmos? Uma edificação não se sustenta sem seus pilares... Nos vemos na Sala de Controles!

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  12. Claro que pode, Newton. E usando do mesmo princípio, vou ser também. Apesar de não conhecê-lo, posso afirmar que o que sustenta o São Pedro, ao contrário do que diz, não são "as nossas orgulhosas lembranças". Primeiro, por não serem nossas, a partir do que você diz no início, de não ser bonito, não ter estilo, nem ser funcional, nem prático. Ou seja, não se inclua. Segundo: não são esses itens (beleza, estilo, funcionalidade e praticidade) que definem as questões patrimoniais, o que me faz crer que você não entende da questão que está opinando. Se você partir? Que é que tem a ver? Uma edificação não se sustenta sem seus pilares? A que pilares se refere? A esses itens que nada têm a ver com a questão ou com a sua triste partida? E o que há de orgulhosa nessa lembrança? Não, meu caro, você pensa que está na sala de controles. E talvez esteja, e isso explique por que as coisas não estão dando certo. Uive, meu amigo lobo, uiveeee

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