domingo, 27 de dezembro de 2020

"A Sombra e sua Claridade", de Pedro Salgueiro para O POVO


No meio de tantas notícias ruins, tragédias públicas e privadas, governo necrófilo negacionista das ciências e pastores (também padres) charlatães, nos deparamos com diversas reações ao caos, desde o desespero à improvável tranquilidade; para procurar uma sociabilidade que se tornou difícil com as restrições de uma pandemia, vamos enchendo os muitos grupos das redes sociais na internet com nossa presença excessiva, onde gritos de dor e lamentos convivem com a pilhéria e ódio de outros, o desespero com a fé (nem sempre somente a religiosa, mas das artes, da política etc.), o riso inocente se mistura com o palavrão... o escárnio com o otimismo... infinitas são as misturas possíveis, quase todas explosivas, vezes cínicas, excludentes noutras.

Não há grupo, familiar ou de amigos, de reles conhecidos, de superficiais partidários dos mesmos afãs, que não tenha paredes trincadas, laços eternos azedados, amizades desfeitas, parentescos renegados, juras eternas esquecidas... Novos pactos de amor e ódio, união ou intolerância vão fincando raízes: nunca mais seremos os mesmos!, dizem uns; com o sofrimento havemos de melhorar!, esperam outros... Ah, não, o ser humano será sempre o mesmo!, desdenham os pessimistas... Deus está na frente de tudo!, acreditam outros... E dessa mistura ampla e rasa vão surgindo verdades provisórias e ligeiras... que não sabemos aonde vão dar.

Nosso humor estará refém dessa rede de intrincada de opiniões, suas intrigas e soluções: estou triste e procuro um amigo ou grupo mais leve que me libere o enorme peso; quando mais revoltado vou às cavernas da ira de outros nichos buscar pólvora para meus estopins... Vivo, pois, a mercê dos meus e dos outros humores (não seriam horrores?). Não só nas gentes de carne e osso procuro âncoras, trisco nas músicas, peças e livros: dia desses desisti de conversar com um amigo quase sempre bem-humorado, mas que nesse dito dia estava deverasmente intratável: “Tudo em paz por aí?”, iniciei otimista. “Como assim?”, me respostou com outra pergunta. “Como poderia, né!?”, apaziguou... Mudei de assunto, percebendo que não teria arrego nem consolo. Desisti e fui para um dos meus livros de segurança à cabeceira (O Barril Mágico, de Bernard Malamud); olhei onde o marcador estava e continuei a leitura: “Davidov, escrivão, abriu a porta sem bater, entrou mancando no cômodo e sentou-se, cansado. Pegou o caderno de anotações e pôs-se a trabalhar. Rosen, ex-vendedor de café, abatido, com olhos sem esperança, estava sentado, imóvel, com as pernas cruzadas em sua cama estreita. O cômodo era quadrado, limpo, porém frio, iluminado por um globo de luz fraca. Eram poucos os móveis: a cama, uma cadeira dobrável, uma pequena mesa, velhas cômodas sem pintura – não havia armários, tampouco havia necessidade deles – e uma pequena pia com um pedacinho de sabão verde barato na saboneteira. O cheiro forte do sabão se espalhava no ar. A velha persiana preta estava totalmente baixada, o que surpreendeu Davidov.

      – Por que não levanta a persiana? – perguntou ele.

      – Deixe como está.

      – Por quê? Está claro lá fora.

      – Quem precisa de claridade?

      – Então do que é que o senhor precisa?

      – De claridade é que não é – respondeu Rosen.”

Percebi que mesmo no livro continuava conversando com o amigo depressivo, então larguei o volume e fui tentar um cochilo.




 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

"O Espelho", de Raymundo Netto para O POVO


 

Circulou em vermelho o anúncio de jornal.

Viera do sertão esperançando melhoras de vida. À procura de um emprego, tinha passados os dias e, mesmo batendo em diversas portas, só recebia nãos.

Fora acolhido à casa de um irmão e passava bem tantas e quantas vezes, porém, de um momento para outro, ansiou empregar-se sem tardança.

Tudo porque percebera que a cunhada se dava ao entusiasmo de sua presença. Dias-há, a sonsa dera para cruzar seu caminho a camisolas e distraía-se: porta do banheiro aberta quando a feita do banho. Ademais, nunca levava a toalha para o banheiro. Era chegar ao chuveiro e gritar: “Fulano, traz a minha toalha... Eu esqueci!”

Temia que seu irmão percebesse a folga da esposa e viesse lhe tomar satisfações.

Decidiu: tão logo arranjasse um emprego, fosse qual fosse, alugaria um cantinho, um quarto-e-sala qualquer, mas sairia dali antes que o pior se abancasse.

Naquele dia, então, acordara mais disposto, diferente, entusiasmado. Refletia esperanças!

Cedo, encaminhou-se ao endereço do anúncio: um escritório. Cerrou com os dedos o nó meio que penso da gravata, sacudiu a mão nos ombros, segurou firme a pasta do currículo e adentrou.

Sentou-se na recepção entre outros candidatos e esperou a sua vez.

Por motivo ignorado, a secretária logo lhe devotou um olhar sorridente e sedutor, desusando o recato. Encabulado, respondeu com falsa simpatia e polidez.

Chegara a sua vez, finalmente. Ela o pegou pela mão e o encaminhou, com olhos fitos nele, à gerente. Esta, por sua vez, pareceu surpresa, admirada com sua presença e, imediatamente, para seu estranhamento, pôs-se a tratá-lo com gentilezas explícitas.

Ela o ouvia, o ouvia, mas limitava-se a observá-lo em olhar profundo, tão íntimo e contemplativo que o confundia. Foi quando ela moveu os lábios uma única vez e sussurrou suspirosa: Já está contratado! Só!

Sem acreditar, ele perguntou o que iria fazer, qual a sua função, mas ela insistia: não importava, faria qualquer coisa, ou coisa nenhuma; poderia, se assim o quisesse, e se não, que não o fizesse... Estava contratado!

Agradeceu e, quando quis sair, ainda ouviu a insistência da gerente e da secretária: ficasse mais um bocadinho...

Na rua, deu-se o mesmo: as mulheres, de todos os lados, miravam-lhe com sorrisos desvelados, irrefletidos, sem pudores, enternecidos... Esbarravam-se nele, como ao acaso, como quisessem vê-lo mais de perto, tocar-lhe, senti-lo.

Correu para casa, trancou a porta e foi ao banheiro. Torceu para que a cunhada ali não estivesse.

Encostando-se à pia, teve a conclusiva revelação: ante o armário do banheiro, percebeu que, ao invés de sua costumeira face, havia apenas um espelho!



 

sábado, 14 de novembro de 2020

"Se o Amor Fosse de Graça", de Epitácio Macário para o AlmanaCULTURA


Epitácio Macário e Raymundo Netto

Haveria algo nesse mundo que não seja informado pela busca e pelo gasto do dinheiro? Fui à leitura do livro de Raymundo Netto (Quando o amor é de graça – Editora Demócrito Dummar) com essa pergunta em mente.

A escrita inteligente com que me deparei não apenas indicou propostas para a questão, como me conduziu, a refletir, pelos dutos da existência. Mediados pelas crônicas, fatos corriqueiros foram sendo reconstruídos na tessitura humana que lhes faz serem acontecimentos, conteúdo e forma.

O domínio da língua, a sagacidade, a crítica mordaz, o lirismo, a ironia, o humor... tudo se mistura e faz o leitor transitar do riso à circunspecção num estalo de dedos.

Como é próprio do gênero, cada crônica encerra um posicionamento do escritor que, no caso desse livro, é sempre inquietante. Quem gosta de livros confortantes, sugiro que leia... outro. Pois, ao meu ver, o trato daquilo que nos aparece como banal – e muito propício ao fuxico e à autoajuda – aqui é a maneira de Netto disfarçar algo de profundo.

Ao que me pareceu, nada é de graça nesse livro.

Declaro-me, desde já, muito satisfeito por saber de outro cara para quem ser feliz, em meio ao sofrimento em escala social, é egoísmo em estado puro. Um sujeito condenado à treva por preferir falar da vida e do amor gratuito, num mundo onde a glória performática, o “dinheiro e o poder” são os “verdadeiros deuses”. Encontro-me nesse compadre Raymundo que tem “problema com relógio de ponto e com extratos bancários”, que gosta “de letras, não de números” e por isso “não se adapta ao dinheiro” – este que é o “grande olho da providência”, fomentando a “selvageria entre os iguais numa sociedade desigual”.

Deparei-me com um cabra ciente de que a fealdade é uma bênção, pois “a beleza se perde, mas a feiura é permanente, e com o tempo e o costume passa a ser compreendida junto com a paisagem”. Ora, não depender dos bisturis, do Botox e das longas sessões em salões “de beleza”, para manter o que se acha que tem, não já é algo para se comemorar?! Além do mais, temos tido prova de sobra no Brasil de que tudo pode piorar... Então, compadre Raymundo, o melhor é deixar como estamos!

O que me prende nessas passagens é a profunda verdade escondida na molecagem: a autenticidade requer a coragem de assumir-se como se é. Isto não é fácil para quem traz em si uma pulsão para o diferente do costumeiro, um olhar agudo sobre tragédia e glória humanas.

O sujeito lírico que aparece e se esconde no livro é um destes que remam contra a maré montante.

Este leitor experimentou lambendo os beiços os disparos satíricos  contra a performance de escritores que jamais se perguntaram “literatura para quem?”. Os ditos intelectuais que se acham cultos “no sentido erudito do termo e escrevem com monotonia ou ilegibilidade, em experimentalismos a lhes acobertar a ausência ou excessos de conteúdo pelo garimpo artificial do vernáculo”.

Eu sei que essa maneira de questionar seu próprio mister é ácida e causa efeito no meio que Raymundo Netto frequenta. Com essa falta de modos, “esse sujeitinho ridículo” abre o maior pau. Comprazo-me com isto não somente porque estou assistindo na arquibancada, pois no meio acadêmico a briga é a mesma, mas pela razão da crítica e também porque confusão só presta grande!

Ora, ladys and gentlemen, não seria o caso de assumir a condição de escritor num país de não-leitores?! Para que a empáfia e o hermetismo? Não seria melhor expressar, mesmo que doa, o “drama do escritor” em dia de lançamento?... Esperar o público com mesas replenas de salgados e guaranás, atender a um, dois ou três com autógrafos – e quando for mais de cinco, pode ter certeza que são familiares que jamais lerão o livro. E depois carregar as caixas de exemplares que sobraram – quase, quando não, todos! – de volta para o porta-malas do carro, utilizando-se, inclusive, da força de trabalho da esposa, que é “a maior vítima de todo autor”.

Pois sob o lápis de Netto, o reconhecimento desse drama se derrama como crítica social na epopeia do autor que tem de morrer para ver sua obra publicada. Ora, “Escritor bom é escritor morto”. E naquele que, “após sucessivos insucessos, entregou-se a Jesus e chegou à conclusão de que a literatura é coisa do cão”. Sim, só pode ser coisa do demônio a derrotar alguns, matar outros e corroer o caráter de tantos no inebriante sonho do sucesso editorial. A trágica condição de seu mister aparece ainda no relato do congresso de escritores em “Brás ilha” onde os poetas “reunidos em palestras se perguntavam – com a pouca audiência presente era quase ‘se’ mesmo – por que não conseguiam se projetar nacionalmente”.

Para este leitor, o que temos produzido nesse país é precisamente a barbárie em escala social: a que se abate sobre os ilustrados e endinheirados, desprovidos de qualquer senso ético, e a que se alastra sobre as maiorias que vivem da mão para a boca.

Incrustado nessa díade, onde o atraso alimenta e é base do moderno diria Francisco de Oliveira, o escritor labuta com os mais difíceis demônios. Parafraseando Carlos Nelson Coutinho, diria que um deles é a quase sempre necessidade de se mover sob a sombra do poder dominante. Servo culto, mais servo do que os outros, pois em condições de saber-se assim e escolher. Se a opção for outra, a busca da verdade e da autenticidade, o preço a pagar não é barato.

A mim me pareceu que Raymundo Netto saltou para dentro dessa arena e escolheu seu lado.

A sátira e a ironia são o método e o instrumento com que o autor dessas páginas esgrima a situação nacional e a sua inserção – nela – e dos seus irmãos de ofício. E, assim, se há duas maneiras de se tornar escritor – “a primeira é escrevendo, que é a mais difícil e demorosa” e a “segunda é entrando em academias”, ele optou pela terceira: escrever com verdade e autenticidade.

Esta sua escolha o autor revela nas confissões à forca, onde se diz um “sujeitinho ridículo, como as cartas de amor de Pessoa, com a fria esperança de um dia liberdade, de uma tarde compreensão e de uma noite ser silêncio”. Alhures, se declara “ligado a saber mais, e não só, das coisas do âmago das gentes, de suas vidas corriqueiras, das coisas engraçadas de não se rir, ou mesmo daquelas de se lascar de rir, mas de íntimas humanidades, folhas de não se deixar levar ao vento”. Falar das gentes, das íntimas humanidades... eis a matéria do livro.

E se é assim, não poderia deixar de tratar do amor, que é mote da obra, insumo e invento das íntimas humanidades.

As cuteladas contra a alienação em sua crítica social não é já, de início, uma declaração de compromisso – de amor? – para com as gentes postas à margem do progresso econômico e das letras?

Há de se dizer que a severidade da crítica e a ironia ácida não rimam com o amor – que é sempre sublime e desliza leve em nuvens de contentamento. O reflexo lírico seria o estilo mais adequado para falar desta que é, na Filosofia, uma das grandes virtudes.

Ora, ora, meu compadre, para Raymundo Netto não é assim, não! Nem o amor é apenas doce ou azedo, tampouco devem ser as metáforas que dele sejam o signo.

Este leitor compreendeu que em Quando o amor é de graça tudo tem um preço: o pão e o livro, as calcinhas e a poesia, a felicidade e a dor, o ser e o existir. Preço que se mede em moeda, em reprovações, no investimento de energia física, moral e psíquica.

É como quando ele trata de vida e morte com a inteligência mordaz de quem sabe que a primeira é o início da segunda e esta o fim daquela. Siamesas! Assim é o amor na barulhenta conversa entre pacientes numa antessala do consultório psicanalítico. O preço para eles: a dor. “Aqueles que lhes estão à sombra são inevitavelmente arrastados à rósea infelicidade”, vaticina um paciente.

Uma contradição interna, amor e felicidade vs dor e tristeza caminham de par nas páginas lidas e sentidas.

Há nessas paragens, num “Coração de bolso”, uma tristeza de quem já perdeu ao ganhar, pois se é uma ferida que dói e não se sente – o amor – às vezes a dor permanece quando ele acaba.

Esta lembrança que fica precisa ser lavada com água pura da literatura para, assim, escorrer em correnteza demorosa. Da mesma maneira que “a conquista de afeto se dá nos degraus do calendário, na ciranda do relógio”, a reconversão de sua perda em pulsão de vida segue o mesmo ritmo. Não se pode arrancar a golpes de automação as reminiscências do tempo em que se amou e foi amado.

Daí a contradição do amor: exigir do amante a mobilização de todas as forças para erguê-lo e, depois, para desconstruí-lo. Custa caro! Fica o desejo, porém, da conquista do afeto “que se dá com gratuidade e tolerância, no reconhecimento de nossas existências, imperfeições e afinidades”.

A teimosia dessa busca encontra amparo na prosa poética de Raymundo Netto. Sua literatura planta na aluvião e irriga na aridez dos tempos do amor, sem deixar de registar acidentes e dores do percurso. Mais que um atirar-se numa jornada rumo ao outro, o amor é busca da felicidade num caminho para o si-mesmo do ser amante. Para nosso escriba, “Quando nós conseguirmos ser nós mesmos, nos encontrarmos, fatalmente ela também nos encontrará, e se deitará conosco em estrelada noite de esfuziante e perfeito amor”.

Que edificante!

Os escaninhos da escrita nos conduzem ora ao mar, ora à terra, ora ao espaço, ora a lugar nenhum quando se trata do amor romântico. Em “Crônica desamada”, o sujeito lírico posiciona-se, mais uma vez, entre o talvez e o provavelmente. O amor é possibilidades...

Eis que irrompe, porém, um tipo de sentimento que prende sem exigir, ata nas cordas do coração e desata os nós da existência a facilitar o viver as horas, os dias. E o faz com tamanha força e sem alarde, como quando deitados na sala, numa tarde de domingo, experimentando uma “renúncia espontânea, nem de doer, sem cobrança de nada em troca”, pai e filhas gêmeas.

Assim, vai emergindo das linhas, corajoso e sem armaduras, um amor de dar as mãos no pôr do sol, gratuito, espontâneo como a brisa. Talvez o mesmo que experimentara como filho de mãe que nunca se desmanchou em afagos, mas havia dias que lhe chegava com um potinho enrolado num pano, cheio de farofa – o cuidado!

Quando o amor é assim, os amantes o vivem como estado de graça. Poetas enxergam na escuridão. Cânticos transportam-nos para alhures. E é como a chuva fina regando os torrões ressequidos do ser-tão, escoando nos corações que se aninham como passarinhos.

“Ó, mio babbino caro”!

 

Epitácio Macário é graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará (1995), mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará (1999) e doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (2005). Atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará na Graduação em Serviço Social e no Mestrado Acadêmico em Serviço Social, Trabalho e Questão Social (Mass/Uece). Membro-fundador do Centro de Estudos do trabalho e Ontologia do Ser Social (Cetros). Tem experiência na área de Economia Política e Fundamentos da Educação. Atua principalmente nos seguintes temas: trabalho, educação superior, desenvolvimento econômico e questão social.



 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

"O Estandarte do Coronel", de Raymundo Netto para O POVO


Coronel Oswaldo era um viúvo octogenário. O síndico perfeito. Homem de temperamento forte e austero, se distinguia pela invulgar habilidade de comando, fruto de anos dedicados às Forças Armadas de um Brasil. Procurassem, fosse na hora que fosse, acolhia pacientemente as lamentações das moradoras — os maridos não lhes davam a menor bola — que o palmeavam e o exaltavam na hora da janta: “Que homem esse é o seu Oswaldo!”

Entretanto, guardava ele um silêncio: a doraguda de um falo desanimado. Para o orgulhoso militar, imperdoável. Soube, porém, num fortuito dia, e decidiu implantar uma prótese peniana. Tudo envolto no mais absoluto sigilo, claro, e que Deus o livrasse se alguém supusesse um dia daquela sua vergonhosa fragilidade!

Com a tecnologia a seu favor, Oswaldo não deixaria mais de bulir em seu brinquedo. Nem acreditava naquilo. Soubesse, teria feito antes... Passou a querer a toda hora, a todo instante. Fosse mulher, passasse por sua revista, agora sabia: apertava aquela bombinha na mais segura possibilidade.

As domésticas, diaristas, as mocinhas da rua e mesmo uma ou outra colega de faculdade da filha, vacilassem, o coronel as colocava em sua linha de fogo.

Mas, iniciada a brincadeira, ao acionar a bombinha milagrosa, tinha ele a mania de exigir da companheira a apresentação de continência ao “glorioso estandarte”, como assim apelidara o membro ora ascendente e vigoroso.

As coitadas, a princípio, o faziam por graça, depois percebiam-lhe o modo estranho, exigido cerimonialmente a cada nova intervenção. Atrevessem dispensar-lhe tal continência, o desagrado era profundo, de esboçar uma carantonha, puxar as parceiras ao colo e dar-lhes tapas vigorosos na bunda, que era para discipliná-las. A ordem, então, seria no tapa!

Daí, em pouco, a mania do coronel passou a povoar o clássico fuxico das áreas de serviço do prédio. As senhoras fingiam, outras nem tanto, mas enojavam-se da tara do velho. Os moleques de rua, montados em bicicletas, passavam-lhe a prestar continências gargalhosas. Os maridos não deixavam mais suas mulheres trocarem miúdos com aquele homem, outrora muleta útil do matrimônio alheio, que, por fim, teve a sua primeira grande derrota em campanha sindical, desde que passara a residir no “Morada das Palmeiras”. Estava, enfim, des-mo-ra-li-za-do!

Sem o posto sindical, vítima de chacotas, amargando a solidão da popularidade, o pobre e inútil coronel tombou. Encostou os coturnos.

A cerimônia fúnebre se deu no salão de festas do condomínio. As senhoras rezavam pela alma daquele pecador que, apenas em seus últimos tempos, seduzido foi pelo mundano. A filha era, de fato, a única a dispensá-lo o pranto sincero. Foi quando o absurdo se deu: ao jogar-se com uma coroa de flores sobre o corpo paterno, sabe-se lá como, acionou a dita bombinha e o velho "estandarte", resistindo à morte, apontou ao céu. Abismada e sem saber o que fazer, a filha caiu para trás numa vergonha não apenas tão grande quanto à da plateia feminina que, maquinalmente, batia a última e desejada continência ao coronel.




 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

"Dolorosa", de Raymundo Netto para O POVO


 A sisuda e determinada viuvez de Dolorosa era de causar espanto até no falecido.

Não fosse para comprar o pão matutino, nunca de sair às ruas, de oferecer-se em janela e muito menos de se desocupar em calçada. Durante o dia, flagrada em oração diante do bem cuidado oratório onde descansavam aromáticas flores do campo em torno do derradeiro retrato de seu inesquecível amor. Depois, por horas, calava a respiração na imagem do morto, sabido que impressa ainda mais no peito em luto. Assegurava cumprir a clausura em vida, pois se dava por jurada ao ser amado, aquele que, dizia, só lhe contrariara uma única vez: na prematura morte!

Assistindo àquele martírio, imploravam os amigos: “Tão moça. Vai, mulher, viva!”. Para Dolorosa, todavia, amor que o tempo consome não é amor. O verdadeiro, único e exclusivo amor, herança maior do Deus que um dia os unira, sobrepujava a tudo, inclusive, a ausência física, merecendo ele toda e qualquer renúncia. Realmente era esse seu pensamento. Uma agonia, porém, a enredara, justo na solidão das eternas noites, quando suores e desejos eram contidos violentamente a pedradas de vergonha pela casta consciência. Sim, vivia ela um dilema secreto: o despertar do querer por outro homem.

João era um jovem auxiliar de padaria, bem mais moço que Dolorosa. Há meses, naquele estabelecimento, um descuido: trocaram olhares, e, num desses, Dolorosa fraquejou. No momento não sabia, mas João já a observava. Soube ele daquela viuvez defendida a todo custo. Isso o atraía profundamente. Também ele, às noites, em seu catre cheirando a farinha, se via perdido em lençol e no domínio da branquidão do corpo intacto daquela mulher. Imaginava ela entregue e em delírios, por tanto vigor reprimido. Naquelas manhãs, mesmo quando apartados pela lonjura incalculável do balcão, lia, escrito nos olhos divinos dela, a recusa ao toque alheio. Vê-la, sentir a polpa dos seus dedos ao receber os trocados do pão, buscá-la no interior das janelas da casa escura, passaram a ser as suas motivações de existir nesse mundo.

Um dia, Dolorosa despertou lívida e mais cedo que o de costume. Aguardou a abertura das portas de ferro da padaria. Correu ao longo do balcão e dirigiu-se ao rapaz. Entregou-lhe um dinheiro: “Moço, preciso ir à rua. Você poderia levar meus pães mais tarde em minha casa?”

João, surpreso, não recusaria. Assim, ao vê-la passar de volta, imediatamente enrolou os pães e plantou-se à sua porta, cuja soleira, há anos, não cruzava um coração masculino.

Dolorosa o aguardava. Ávida, abriu a porta e, por instantes, os dois permaneceram parados e mudos. O que João não sabia é que ela não o via exatamente como a vida o pintara, mas, sim, um quadro mórbido e repugnante. O corpo em ruínas e farrapos. Os ossos e traços de músculos revelados por entre carnes escuras carcomidas em vermes. A caveira sorridente a denunciar olhos amarelecidos, a língua negra e seca. Apenas os restos da imagem do homem que um dia o marido, e não o João, foi.

Depois, cerrada a porta, a respiração de ambos abrasava a casa de tal modo que os espelhos da sala embaçaram, recusando assistir ao ritual feroz e lascivo daqueles amantes que exalavam, no ardor do suor e do amor, o perfume frio e acolhedor da mais fiel sepultura.



terça-feira, 27 de outubro de 2020

"Houve uma vez um Anarquismo em Fortaleza", de Tião Ponte para o AlmanaCULTURA


 Tião Ponte ao lado de "Flor Punk"

Foi assim:

No início dos anos 1980, à medida q a ditadura militar caía feito um viaduto, crescia um sôfrego desejo de liberdade no país após tantos anos de mordaça. Sem esperar pela oficialização do fim da ditadura – pois quem sabe faz a hora, não espera acontecer –, a nossa gente sofrida despediu-se da dor, voltou a sorrir e já falava, cantava, encenava e publicava expressões e criações sem de medo de censura, prisão e tortura.

Duas dessas manifestações, no entanto, foram surpreendentes: a volta do anarquismo depois de quase cem anos, e o aparecimento do movimento punk. No meio disso tudo, eu fazia o mestrado em São Paulo e também fiquei tomado por aquele clima contagiante, mas especialmente tocado por esses dois movimentos.

De uma hora pra outra, emergiam núcleos anarquistas em São Paulo e em outros estados; na Bahia o jornal libertário Inimigo do Rei voltava a ser publicado, enquanto livros de história do Brasil resgatavam o movimento anarquista brasileiro durante a Primeira República.

Paralelamente, jovens proletários do ABC paulista e de subúrbios de Sampa criavam o movimento punk no país. Suas roupas, falas, zines e canções explicitavam q punk e anarquismo estavam intrinsecamente ligados.

Cheguei em São Paulo em 82 com cabelo grande, barba, mochila de couro, roupa colorida, casado, comunista e assoviando Chico e Victor Jara. Voltei para Fortaleza em 84 de cabelo curto e espetado, sem barba, com roupas escuras, separado, anarquista e trazendo LPs dos Ramones e dos Ratos do Porão.

Voltei também muito desejante de criar um grupo anarquista de estudos & ação q contasse também com a participação dos punks da cidade, caso existissem. Existiam: tinham bandas, faziam zines, sofriam repressão policial e participaram de bom grado do nosso “Coletivo Anarquista de Fortaleza”. Mais: embasbacaram e sacudiram os esqueletos da multidão que compareceu às duas festas que realizamos, uma na quadra do CEU e outra no Pirata Bar (que, à época, estava revolucionando a noite da cidade). Tais festas foram notícias no O POVO e serviram para lançarmos nosso zine O Mutante Visionário e vender exemplares do Inimigo do Rei, já q havíamos nos associados ao grupo baiano que o editava.





Havia dois líderes naturais entre os punks, o Dedé Podre e a Flor Punk. Esta era vocalista, letrista e baixista da Resistência Desarmada, primeira banda de rock de Fortaleza formada só por mulheres.

Creio que aprendemos mais com os punks do q eles conosco. Eles tinham a vivência anarco-punk cotidiana e de rua q nós outros integrantes, de classe média, não tínhamos.

Solidariedade, companheirismo, debates, performances e fruições marcaram a existência do nosso Coletivo e da nossa convivência com os punks nos três anos q durou essa curta, para mim inesquecível, viagem.


 

PS: Quase 40 anos depois, os LPs dos Ramones e dos Ratos do Porão continuam convivendo numa boa com os dos Chico e do Victor Jara na minha discoteca. 

 


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

"ARTE LITERÁRIA VERSUS MERCADO EDITORIAL: DUAS FACES DA MESMA MOEDA?", com Raymundo Netto (23.10)


Clique na Imagem para Ampliar!

Palestra Virtual

ARTE LITERÁRIA VERSUS MERCADO EDITORIAL:

DUAS FACES DA MESMA MOEDA?

Data e Horário: 23 de Outubro (18 horas)

INSCRIÇÕES GRATUITAS: 

https://doity.com.br/moranafilosofiaempandemia-23deoutubro

 

APRESENTAÇÃO: Raymundo Netto (escritor, editor, produtor cultural e gerente editorial e de projetos da Fundação Demócrito Rocha-FDR)

 

SINOPSE: Neste encontro, discorreremos sobre o fazer literário e as regras tácitas ou não que regem o mercado editorial contemporâneo. Qual o papel do(a) escritor(a), quais as suas expectativas e anseios, por que escreve e porque escreve o que escreve, onde quer chegar, quais as suas frustrações e por que elas existem. O conflito entre criador e criatura em um convite para refletirmos juntos.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Mercado editorial. Escrita Literária. Profissão Escritor.


SOBRE O PALESTRANTE: Jornalista, escritor, editor e produtor cultural. Autor de Um Conto no Passado: cadeiras na calçadaOs Acangapebas (Prêmio Osmundo Pontes de Literatura, da Academia Cearense de Letras), Crônicas Absurdas de Segunda (finalista do Prêmio Jabuti), Quando o Amor é de Graça!Cronologia Comentada de Juvenal GalenoCentro: um coração malamadoPadre Cícero: o filmeNilto Maciel: perfil biográfico; e dos infantojuvenis A Bola da VezA Casa de Todos e de NinguémOs Tributos e a CidadeBoto Cinza Cor de Chuva. Cronista convidado do Vida &Arte do jornal O POVO desde 2007. Coeditor das revistas CAOS PortátilPara Mamíferos e curador da Maracajá; Coordenador de Políticas do Livro e de Acervos da Secult-CE (2008-2011), curador da IX Bienal Internacional do Livro do Ceará, redator do Prêmio Literário para Autor Cearense e coordenador da I Feira do Livro do Ceará em Cabo Verde. Recebeu a Medalha Boticário Ferreira em 2012. É gerente editorial e de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

 

INSCREVA-SE NO CANAL DO MORA NA FILOSOFIA: 

youtube.com/moranafilosofiaufal

 

INFORMAÇÕES ADICIONAIS SOBRE O PALESTRANTE:

·         Escritor cearense Raymundo Netto é finalista do Prêmio Jabuti:

https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2016/10/escritor-cearense-raymundo-netto-e-finalista-do-premio-jabuti.html

 

·         LPA com Raymundo Netto - O QUE A LITERATURA FAZ COM VOCÊ?:

https://www.youtube.com/watch?v=RSyXFF4mg5g

 

·         CABECEIRA 2 | Raymundo Netto:

https://www.youtube.com/watch?v=KVPaqZvesDU

 

·         CABECEIRA 1 | Raymundo Netto:

https://www.youtube.com/watch?v=t0LDUvOEDKU

 

·         PROGRAMA DIÁLOGO - RAYMUNDO NETTO - Escritor e Produtor Cultural:

https://www.youtube.com/watch?v=mArD-cFC9Ko

 

·         Revsita Maracajá:

http://fdr.org.br/maracaja/

 

Mora na Filosofia (Blog): 

http://moranafilosofiaufal.blogspot.com/

 

Mora na Filosofia (Facebook): 

https://www.facebook.com/nafilosofiaufal/

 

Mora na Filosofia (Instagram): 

https://www.instagram.com/moranafilosofiaufal/

 

ORGANIZAÇÃO:

Maxwell Morais de Lima Filho

Curso de Licenciatura em Filosofia - ICHCA/UFAL

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6620816919487159

Site do Curso: http://www.ichca.ufal.br/graduacao/filosofia/

Telefone: 82 3214-1325

Endereço: ICHCA (Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes)

UFAL – Universidade Federal de Alagoas / Campus A. C. Simões

Avenida Lourival Melo Mota, s/n, Cidade Universitária – Maceió – AL

CEP: 57072-900