Foi assim:
No início dos anos 1980, à medida q a
ditadura militar caía feito um viaduto, crescia um sôfrego desejo de liberdade
no país após tantos anos de mordaça. Sem esperar pela oficialização do fim da
ditadura – pois quem sabe faz a hora, não espera acontecer –, a nossa gente
sofrida despediu-se da dor, voltou a sorrir e já falava, cantava, encenava e
publicava expressões e criações sem de medo de censura, prisão e tortura.
Duas dessas manifestações, no entanto,
foram surpreendentes: a volta do anarquismo depois de quase cem anos, e o
aparecimento do movimento punk. No
meio disso tudo, eu fazia o mestrado em São Paulo e também fiquei tomado por
aquele clima contagiante, mas especialmente tocado por esses dois movimentos.
De uma hora pra outra, emergiam núcleos
anarquistas em São Paulo e em outros estados; na Bahia o jornal libertário Inimigo do Rei voltava a ser publicado,
enquanto livros de história do Brasil resgatavam o movimento anarquista
brasileiro durante a Primeira República.
Paralelamente, jovens proletários do ABC
paulista e de subúrbios de Sampa criavam o movimento punk no país. Suas roupas, falas, zines e canções explicitavam q punk e anarquismo estavam
intrinsecamente ligados.
Cheguei em São Paulo em 82 com cabelo
grande, barba, mochila de couro, roupa colorida, casado, comunista e assoviando
Chico e Victor Jara. Voltei para Fortaleza em 84 de cabelo curto e espetado,
sem barba, com roupas escuras, separado, anarquista e trazendo LPs dos Ramones
e dos Ratos do Porão.
Voltei também muito desejante de criar um
grupo anarquista de estudos & ação q contasse também com a participação dos punks da cidade, caso existissem. Existiam: tinham bandas, faziam zines,
sofriam repressão policial e participaram de bom grado do nosso “Coletivo
Anarquista de Fortaleza”. Mais: embasbacaram e sacudiram os esqueletos da
multidão que compareceu às duas festas que realizamos, uma na quadra do CEU e
outra no Pirata Bar (que, à época, estava revolucionando a noite da cidade).
Tais festas foram notícias no O POVO
e serviram para lançarmos nosso zine O
Mutante Visionário e vender exemplares do Inimigo do Rei, já q havíamos nos associados ao grupo baiano que o
editava.
Havia dois líderes naturais entre os punks, o Dedé Podre e a Flor Punk. Esta era vocalista, letrista e baixista da Resistência Desarmada, primeira banda de rock de Fortaleza formada só por mulheres.
Creio que aprendemos mais com os punks do q eles conosco. Eles tinham a vivência anarco-punk cotidiana e de rua q nós outros integrantes, de classe média, não tínhamos.
Solidariedade, companheirismo, debates,
performances e fruições marcaram a existência do nosso Coletivo e da nossa
convivência com os punks nos três
anos q
durou essa curta, para mim inesquecível, viagem.
PS: Quase
40 anos depois, os LPs dos Ramones e dos Ratos do Porão continuam convivendo
numa boa com os dos Chico e do Victor Jara na minha discoteca.
Like. Conheço a cena punk de São Paulo e Brasília por conta de documentários e por entrevistas de seus sobreviventes. Muito bom saber da cena de Fortaleza.
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