ATCHIIIMMM!
O que outrora
poderia ser entendido como um desgracioso espirrozinho na intimidade e
segurança do lar, naquele momento gerava grave inquietação, uma perturbação da
ordem social.
Alardeando como
uma sirene, Tomásia, paramentada com máscara e luvas, deflagra uma ação
nervosa, agitando um borrifador com desinfetante. Bate no marido, grita que
saia da cama e reclama a colcha trocada há pouco, rebolando-a no balde. Pergunta
se o espirro pegou na parede, ensaiando com grossas luvas cor de rosa passar a
esponja nela. Manda que tome o enésimo banho. Ele, que antes descansava
solenemente em sua cama, grita: não aguentava mais tomar tantos banhos, lavar
as mãos já descascadas de sabão e o troca-troca de roupas. Ela exigia: “Quer
que eu morra, quer?”
Tomásia não
perdia um noticiário, além de cutucar o aplicativo do celular de instante em
instante. Numa perplexidade quase eufórica, perseguia o marido pela casa, atualizando-o
daquilo que não o interessava: “Mais mortos. Mais de mil todos os dias.” Puxava
do raciocínio e fazia umas contas nos dedos: “Deus me livre! Como não me
preocupar?”
O marido, cujo
ouvido estava cansado do soar da trombeta portátil do apocalipse, não aguentou
e saiu nu de casa. “Se sair não volta mais, hein?”, avisou.
Entre as
notícias, a milagrosa vacina que viria dar fim ao arborvírus, um parasita com
estrutura parecida com a de plantas e grande capacidade de contágio.
Quando a súbita
vacina foi anunciada e distribuída a todos os países do mundo, parecia a
aguardada vinda do Messias, não se falava em outra coisa. Ali, pensava-se, o
fim do pesadelo.
Tomásia,
pela janela e pela TV, assistia ao povo nas ruas, em pleno Carnaval, se
tocando, se agarrando, se beijando, lançando gotículas no ar como se fossem fogos
de artifício: “Estão loucos?”, pensava, apertando o borrifador, como talismã, contra
o peito inconformado. Também silenciava quando os vizinhos lhe batiam à porta:
“Acabou, dona Tomásia. Pode sair, criatura!” Não saía nem a pau! Havia até quem
achasse que morrera durante a pandemia, pois nunca mais fora vista.
E assim, os
próximos meses: filas extensas de vacinação, multidões aglomeradas em festas
que rompiam noites e dias, a salvação do mundo, o novo mundo: Aleluia!.
Porém, com
o tempo, Tomásia percebeu o esvaziamento das ruas e o silenciamento da TV e do
rádio. Nada nem ninguém nas redes sociais. Inquietou-se. Só assim decidiu, muito
bem equipada, sair às ruas – pois não encontrou ninguém em seu prédio.
Quando
chegou à avenida, teve uma visão escatológica: centenas de milhares de corpos
tomavam as calçadas, a pista, as lojas, os muros e jardins. Corpos cinzentos,
desfigurados, com numerosas pústulas verdes de onde rompiam galhos sinuosos e
folhas de árvores. Em alguns, grossas raízes saiam das mandíbulas escancaradas
ou pelo ventre em busca do solo, atravessando o asfalto. Noutros, mal se
percebia a origem humana tamanha a deformação. O silêncio só era quebrado pelo
vento corrente e pelo barulho das aves rapineiras que aos montes disputavam os
restos de carne ainda possíveis naqueles cadáveres vegetativos.
“A
vacina...então...” Ainda matutando, Tomásia tirou a incômoda máscara e completou
o sorriso e o peito daquele ar úmido e puro da manhã, na certeza esperançosa e azul
de que agora, sim, estava segura.
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