domingo, 19 de julho de 2020

"Ganhar o Mundo", de Pedro Salgueiro para O POVO




Em tempos de forçada reclusão me veio um antigo pensamento, uma daquelas ideias ociosas que nos assaltam em momento de tédio, seja na mesa de um bar, assistindo a uma chata partida de futebol na TV, naquele intervalo do lanche no trabalho, na parada de ônibus (falando em período de pré-pandemia); e agora que tenho que passar esse longo tempo em casa o tal raciocínio vadio me retorna com frequência: Por que passamos tanto tempo fora de casa, "pernando" sem rumo pelas ruas, procurando “sarna pra se coçar” muitas vezes sem motivos aparentes?
Lembro que antigamente, nos meus tempos de estudante, aperreado para dar conta das matérias atrasadas, tendo que encontrar uma folguinha pra ministrar aulas particulares que garantiam o vestuário, transporte e alimentação, eu vivia procurando um jeitinho de voltar logo, logo para casa, deitar numa rede com um livro interessante (enquanto criava coragem de enfrentar as rabiscadas apostilas), dormir aquela soneca vendo (entre o sono e a vigília) a milésima repetição da “Sessão da Tarde” (Ah, quantas Lagoas Azuis mergulhadas naqueles tempos idos!); pois bem, simplesmente vagar pela casa, em descuidos e afazeres, que era na verdade um prazer, quase uma necessidade sonhada.
Veio o tempo de faculdades (sempre mal terminando uma e já começando outra), do trabalho na repartição, das “peladas” com os amigos, de saídas com a namorada, dos muitos lançamentos de livros, de bares fortuitos e noitadas perdidas... Enfim, o que na época de juventude fora um sacrifício ia se tornando um hábito, não por deleite, mas meramente para seguir, por inércia, na roda viva da vida: fui me tornando um “sujeito da rua”, desses que, feito quase todos nós, ficava procurando um motivo para sair – impune e desligado – por aí, chinelão de dedo, calção surrado, camiseta frouxa: tome andanças pelas livrarias, casas de amigos, terminando preferencialmente num boteco desses que tivesse mesas na calçada.
Porém, sempre nesses instantes de descuidos da mente, me vinha o tal pensamento vadio: eu não estaria tempo demais no “meio do mundo”, por que não ficar em casa lendo, cuidando do jardim, vendo bons filmes, arengando que fosse com os da família? Não seriam perda de tempo demasiada essas andanças sem fim? Juro que não chegava a concluir esses raciocínios, mas maneirava e ficava por um bom período mais caseiro, concentrado, estudioso... Mas de novo a roda do mundo me pegava pelos sonhos e lá ia eu seguindo esse movimentado fluxo da vida (pois convites para sair nunca nos falta, não é mesmo!?).
Acredito que muitos hábitos nossos terão mudado com essa quarentena, alguns permanecerão conosco para sempre (espero!, que da crise hídrica no país ficou o hábito de fechar torneiras, daquela de energia elétrica perdurou o zelo com o desligamento de luzes excedentes em casa), como o da higiene e cuidados com a saúde, mas acredito que outros (a maioria, creio!) novos costumes rapidamente serão esquecidos, como essa saudável reclusão que tanto bem faz ao corpo e a alma: logo, logo seremos de novo seres nômades a não sossegar em casa, a procurar desculpas para “ganhar o mundo”.




Nenhum comentário:

Postar um comentário