Meus tempos de glória
foram de 1880, quando nasci, a 1917 quando então o cinema surgiu em Fortaleza e
começou a roubar o público de mim. Depois o rádio, os clubes etc., e por fim a
TV e os shoppings completaram o meu vazio. É paradoxal, porque sou belo, amplo,
tenho árvores, flores, plantas, passarinhos, e vento Zéfiro passeia constante
entre minhas três compridas alamedas (em que moças e rapazes elegantes
desfilavam, flertavam), os combustores artísticos (que me iluminavam como se
fosse dia), as esculturas de divindades gregas (que me dão uma distinção
clássica) e os longos bancos (que recolhiam as de vestidos compridos
farfalhantes e os de paletós para momentos de descanso). Se não bastasse, minha
alameda mais formosa oferece uma vista panorâmica do mar.
Os gemidos do hospital vizinho não
alcançavam as valsas tocadas em meu coreto, e a ladeira luxuriante da rua aqui
do lado não me maculava, pois escura e oblíqua.
Hospitaleiro, meus portões estavam sempre
abertos para acolher as multidões que me ocorriam às quintas de noite e aos
domingos o dia inteiro. Hoje, poucos me percorrem. Deve ser por isso que me
deixam sem cuidados, sem jardins e águas limpas em meus tanques.
Fui cenário de momentos memoráveis entre
meus quatro cantos: declarações de amor apaixonadas, olhares encantados, músicas
inebriantes, mulheres e homens e crianças lindas, gente rica com toda pompa e
gente do povo com roupas simples, porém decentes. Pudesse eu escrever tudo de belo
e comovente de que fui palco, daria um livro inesquecível.
Se me permitem, conto apenas um feito, um
dos mais pungentes que se deu em meu espaço no início do século passado, perpetrado
por alguém que, avesso a holofotes, raramente me visitava.
Chamava-se ele Raimundo Varão, era poeta –
o mais excêntrico deles. Alto, magro, cabelos revoltos, alvo como uma vela, era
soturno, tinha seis dedos em cada mão, só se alimentava de bolacha Jacob com cerveja e criava com carinho
um sapo cururu em sua casa.
Não ligava para moda ou aparência: usava
roupa até ela se acabar no corpo esguio e também não era dado a banhar-se todo
dia – porém, sempre lavava cuidadosamente as mãos quando ia manusear livros,
sua única paixão... Única, até o dia em que, fato que nunca acontecera consigo,
apaixonou-se! Para surpresa de todos, eu incluso, Raimundo Varão
metamorfoseou-se completamente: vestiu roupas novas, vivia banhado e cheiroso
e, milagre maior, agora sorria e brincava (mas o sapo ele manteve).
Assim ficou até que chegou aquela noite,
inesquecível para mim e para alguém, em que adentrou decidido o meu recinto,
com semblante grave, portando uma dor lancinante que o arfar do peito traduzia.
Passou pelos poucos amigos sem lhes responder aos cumprimentos, procurou com os
olhos algo ou alguém, parou entre as esfinges e, diante da pequena multidão que
ali se distraia, fixando o olhar em determinado grupo, declamou com voz
embargada e doze dedos trêmulos:
Anjo, mulher,
demônio a quem venero!
Sombra que
almadiçoo e que bendigo!
Luz dos meus
olhos, infernal perigo,
– causa do meu
eterno desespero!
Ante esses versos de candura e fogo, todos
à volta pararam para ouvi-lo. Fez uma breve pausa para recuperar o fôlego e
continuou:
Se esquecer-te é o
que mais quero,
dar-te em
minh’alma sacrossanto abrigo
e concentrando as
lágrimas comigo,
as minhas próprias
carnes dilacero...
Contendo-se para não desabar antes que
pudesse concluir seu poema, arremeteu tomado de viva emoção:
E se em teu peito
a compaixão não medra,
eu irei pela senda
do calvário
arrancando um
soluço a cada pedra!
Partiu rápido deixando para trás o silêncio
que se quedou entre todos.
Ninguém viu, mas eu vi: aproveitando a
estupefação das pessoas, uma senhorinha saiu lentamente de perto do grupo para
onde o poeta esteve olhando e, baixando a cabeça, ocultou duas lágrimas que
escorriam de cada um dos seus olhos.
Sebastião Rogério Ponte
Maravilha de texto. A personificação do Passeio é a nota de saudade de toda uma população carente de memória.
ResponderExcluirSim, excelente.
ExcluirIluminada a ideia deste texto de uma saudade que percorre os lugares (ora negligenciados) do Passeio, ele assim personificado, fazendo o elogio da metamorfose amorosa deste poeta brilhante,embora desconhecido, a partir do qual o historiador pinta o movimento do tempo, desde a Fortaleza antiga, e ainda nos deixa a nostalgia no que furtivamente escorre dos olhos da senhorinha. Amei. Aplausos meus: Mailma Sousa
ResponderExcluirO final, realmente, é muito sensível, Mailma.
ExcluirQuantas histórias ali se encerram; quantas passagens de lamentos e de amores vividos e não vividos. E tu, nobre poeta Tião, que embala essa multidão de ávidos em saber da poesia do ontem para viver esse hoje tão carente de tudo. E o Passeio continua a passear nessa crônica de construção primorosa. Meu abraço ao amigo-irmão Tião Ponte.
ResponderExcluirImagine, querido compa Tião, se essas coisas que preenchem a cidade resolvessem revelar seus segredos? Imagina os espantos avistados pelos óculos roubados da Rachel de Queiroz! Ou caminhos percorridos pela perna amputada do Capistrano!
ResponderExcluirNa verdade, Tião, essas coisas falam. E muito. Mas num idioma silencioso.
Poucos conseguem ouvir e traduzir como você.
Um abraço, Jailson
Obrigado, Jailson, pela leitura de nosso amigo e pelo seu comentário. Ah, a Rachel de Queiroz passou a usar lentes de contato. rsrs
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