domingo, 10 de maio de 2020

"Hoje eu só quero falar de passarinhos...", de Raymundo Netto para O POVO


Última foto em que apareci com minha mãe



Em homenagem a minha mãe que se encantou em 2016.

Dizia Drummond: “Fosse eu Rei do Mundo,/ baixava uma lei:/Mãe não morre nunca”, mas como sou apenas um Raymundo, cuja lei se limita à desconfiança de todas as leis, à busca da impossível liberdade (inclusive das coisas materiais que não preenchem o espírito) e à aventura de assistir e colorir pensamentos e humanidades, o que posso fazer é continuar celebrando a vida que acontece. E, exatamente no dia destinado àqueles que se foram, ela, essa mãe, parte ao seu encontro marcado. Do peito, o suspiro anônimo de profundo consentimento e, de repente não mais que de repente, do silêncio se fez e se faz um poema.
No horizonte, me germinam as memórias queridas, os momentos singulares e imorredouros de uma vida tomada pelas rédeas da coragem, determinação e abundante amor. Eu acredito não haver um só momento em minha vida em que ela estivesse ausente, pois habita inapelavelmente no que sou, de forma que me são tomados os ouvidos, mesmo agora, pela voz de suas palavras, e, nas angústias, pela sua tácita companhia.
Seguindo o coração diligente, foi mãe de seus irmãos, depois de seus alunos, antes de ser mãe de seus seis filhos, e também antes de assumir a maternidade de outras centenas de pessoas que buscavam seu amparo em momentos de aflição, de dor, de desespero. Uma mulher que não dá chance a queixumes e cuja a vida é breve num “cuidar que se ganha em se perder”.
Em seu consultório, montado em casa, atendia seus pacientes com alegria, num sorriso que abraçava. Enquanto enrolava o algodão na pinça, contava histórias, tomava conhecimento dos dramas pessoais, aconselhava, orava ou cantarolava alguma canção feliz – para desviar os maus pensamentos, dispersar energias negativas ou o cansaço.
Ao vê-la repousar distraída no leito frio, envolta em luminoso adorno de pétalas brancas, uma lembrança me seduziu: era um almoço na casa de minha avó, sua mãe. Um dos últimos. Na sala pequena, tomada pelos dez filhos, esposos e esposas, uma música antiga vibrava no ar. Um dos filhos tomou de abraço a vó Zilma, já bem velhinha e por vezes até apática, e dançou com ela. Os demais filhos passaram a revezar-se na dança. Quando minha mãe assumiu a sua vez, minha avó levantou os olhos acinzentados e repartiu um sorriso. Difícil mensurar o quanto de vida havia nele. Quantas segredos de amor e de compartilhamento ele continha. Estava ali a sua despedida e a sua gratidão. Mãe e filha, em um instante de milagre, entendendo por “milagre” a mais sublime e sincera expressão de doação e renúncia que se pode esperar na Terra.
Sim, eu sei que a saudade, como canta Manuel de Barros, “não precisa do fim para chegar”, e vai doer, mas vai doer diferente, como a música que nos embala uma distância sem volta e nos tira do mundo “que gira depressa” num ensejo gratuito de paz e de recordações.
Hoje, estou feliz, minha mãe saiu da “gaiola”: é livre! E na certeza de que os poetas, como aqueles que amam, “podem ver na escuridão”, trarei comigo a dona Zenaide, com toda a gratidão desse encontro maior do que o mundo: “Uma passarinha me ensinou uma canção feliz e quando solitário estou, mais triste do que sempre sou, recordo que o ela me ensinou.” Nunca adeus!


12 comentários:

  1. D. Zenaide deve estar feliz com esse poema em prosa tão bonito pra ela. Espero que ela e a Zeneida Ponte também se encontrem no céu como se encontraram na Terra. Quase sempre quem não conhecia a minha mãe se confundia com o nome e a chamava de Zenaide. Ela não se importava e dizia: é um nome bonito também. E sorria.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eram vizinhas, não é? Então,quem sabe? Abração, Tião.

      Excluir
  2. Ainda com Drummond, mas só para contrariá-lo: RayMUNDO não é apenas uma rima (a propósito de rima __ Raymundo é lima, pois, além da aventura de colorir, também suaviza as asperezas de pensamentos e humanidades); não, não é apenas uma rima. Raymundo é solução, talvez se diga melhor, é expressão (e aqui tampouco é apenas uma rima), é expressão da leveza da ventura de sair em vida da " ' gaiola ' " que resume a vida a um não acontecer.

    Memória: lá lembranças atormentam Hamlet; aqui lembranças transpiram alegremente desse corpo branco ( quase não se veem pontos pretos, salvo a indumentária referente ao paladino de Gotham City que lhe veste o tronco __ coisas materiais que valem não pela matéria de que são feitas, mas pelo espírito justiceiro que lhe é o sopro animador de sua materialidade aventureira), corpo branco que encerra as cores que colorem a vida que acontece, celebrando-a em palavras absurdamente encantadoras de barros Manuel.

    Memória; lembranças; recordar. Hoje, queria este dia como outro qualquer, não obstante a data que grita do calendário. Fazia ouvidos de mercador, até ter lido o texto. Aceitei o convite para a celebração. Li o texto: a data calou-se; transmudou-se em lembrança que me agitou a memória. Deixar de recordar já não podia. As mães! As mães têm nomes que só podem ser nomes de mães. Quem sabe dona Zenaide não se encontrou com dona Nicinha, lá não se sabe onde, assim por acaso, e... " Sabe, dona..." " Nicinha." " Nicinha?! Zenaide. Sabe, dona Nicinha, meu filho..."

    Filhos, assunto preferencial de mães. Mãe, alimento essencial de filhos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Manduca é Armando Lucas. Manduca era como minha mãe, Dona Nicinha, me chamava. Pois é, Manduca.

      Excluir
    2. Ah, pois que bom. Mamãe me ensinou a não falar com estranhos... rsrsrs Abraço, amigo. Obrigado pela leitura. Nicinha é sua mãe?

      Excluir
    3. Sim. Abraço. Começo a não me sentir tão estranho no ninho.

      Excluir
  3. Que homenagem linda! Parabéns pelas palavras tão lindas. Sua mãezinha tinha um sorriso lindo, vc parece com ela.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado, Beth, pela leitura e pela gentileza. Grande abraço.

      Excluir