“Cavalo-Marinho, mãe.
Ele pegou um cavalo-marinho”, apontava a menina para o irmão Zenor, que chegara
da praia, naquele momento, esbaforido e delirante, agarrado suspeitamente a uma
garrafa velha cheia d’água do mar.
Correu ao seu
quarto ainda ouvindo a irmã resmungar, após desatenção da mãe: “Deixa seu
irmão, menina! O bichinho...”
No quarto,
Zenor botaria a garrafa em cima da cômoda, abriria a janela e passaria o resto
da manhã apreciando o seu achado: uma
sereia. Ainda pequena, uns 10 cm. A criatura estava naturalmente incomodada,
debatia-se contra o plástico e, por vezes, parecia sufocar. “Muita areia...”,
pensou Zenor, que logo daria um jeito de pedir ao pai para comprar um aquário
de verdade.
Anos se
passaram e muitos aquários quebraram enquanto a sereia crescia, sempre aos
olhos atentos e obsessivos de Zenor. Os seus pais achavam ótimo que o rapazinho
tivesse encontrado um hobby, pois não saía de casa, portanto não tinha amigos,
não falava com ninguém, era absolutamente alheio a tudo e a todos, menos à sua
sereia.
Enquanto
tratava seu aquário, como em um pacto de silêncio eterno entre ambos, passava
horas a observar fascinado, quase babando, a sua presa. Os compridos e
encrespados cabelos esverdeados, como algas, oscilando lentamente ao movimento
do corpo muito alvo, pele aparentemente de bebê, embora áspera. Os seios salientes
e sem aréolas, o majestoso pescoço, a ausência de lábios, pequenas brânquias
atrás das orelhas, a cauda longa de escamas denteadas e brilhantes. A irmã,
quando criança, gostava de ajudá-lo nessa tarefa – tinha afeição pela criatura.
Porém, adolescente e feminista, tornou-se contrária ao absurdo e inútil
cativeiro. O pai, interessado apenas nas coisas do mundo, pensava em como
aquilo um dia poderia contribuir nas finanças domésticas. A mãe apenas a
julgava pálida e magra demais.
Vez ou
outra algum dos vizinhos adentrava, por curiosidade, o quarto. Também
fotógrafos de revistas científicas e da imprensa local buscavam frestas de
janelas para captar imagens da curiosa fêmea marinha. Todos eram violentamente enxotados
pelo rapaz grandalhão, obeso e de fala pouco compreensível que se tornara o
Zenor.
Tinha ele
outro segredo. À noite, nunca conseguia dormir. Ao travesseiro, percebia os
olhos dela muito abertos – naturalmente, não tinha pálpebras. Aquele olhar fixo
em sua direção trazia o mesmo ar acusador e odioso de todos os dias. Estaria
acordada? Estaria dormindo? Não sabia. Contudo, a brilhância do olhar amarelado,
no negrume do quarto, parecia a de um farol. Pela manhã, amanhecia em ruínas à
mesa do café, preocupando os pais pela sua saúde já debilitada.
Quando
adulto, passou a morar só com a mãe – o pai falecera e a irmã comprou um
apartamento.
Nesse
tempo, guardava sua sereia no quintal, numa caixa d’água.
Era
meio-dia. Sua irmã veio visitá-lo e almoçar com ele, a pedido da mãe em viagem.
Ele já estava à mesa, quando ela dirigiu-se ao quintal para dar um “oi” à
sereia. Não a encontrou: a caixa d’água vazia, encostada ao muro. Voltou à cozinha
e perguntou ao irmão por ela, o que acontecera com ela. Esfregando a manga do
suéter na boca oleosa e garfando o prato, ele apenas respondeu: “Tem gosto de
salmão... Adoro salmão”.
E desde
esse dia, Zenor dorme um sono formidável, sonhando sempre com outras sereias.