sexta-feira, 14 de setembro de 2018

"Talento", ensaio sobre escrita criativa por Pedro Salgueiro

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Um escritor importante (não lembro se Flaubert) afirmou, certa vez, que o talento, na verdade, não passava de uma longa paciência. A frase ficou rodopiando em minha cabeça desde então, muito mais pelo que ela deixa de dúvida, desconfiança, do que pelas gotas de certeza que traz em suas entrelinhas. 
Já nasceria o artista com uma dose genética, inata, de talento? Uma sensibilidade diferenciada, uma maneira própria de ver o mundo, um ângulo qualquer meio enviesado de perceber certas coisas que a maioria dos mortais não é capaz? No meu modesto entender, acho que "sim" e que "não". Explico: o artista já nasce com essa sensibilidade especial (não diria jamais que ela seja superior) de ver "certas" coisas de um ângulo, digamos, não (ou pouco) convencional. Mas perguntaria: e apenas essa sensibilidade diferenciada seria suficiente para o suposto artista desenvolver com êxito sua arte? Outra pergunta que me persegue quando penso sobre o assunto: somente uma criatura com essa tal característica seria capaz de se desenvolver como artista? Aí que entra a resposta "não", que veio junto com o "sim", um pouco atrás. 
Acredito que mesmo um escritor "naturalmente" talentoso, cheio de "inspirações", não vá muito longe se não tiver toda uma carga de trabalho. E aqui lembro que "trabalho", para mim, não significa apenas o ato em si de escrever, reescrever, lapidar. Mas, bem antes disso, o ato de ler (muito e bem), pensar (muito e bem), ter curiosidade e coragem para aprender sobre "coisas" as quais, muitas vezes, não estão obrigatoriamente e diretamente ligadas à ação imediata de escrever; dialogar com os textos lidos dos grandes autores, os que encontraram suas próprias soluções artísticas, mas, obviamente, não para imitá-los apenas, e pode não conseguir escrever uma grande obra.
A nossa história literária, mesmo o nosso meio artístico contemporâneo, está cheia de exemplos: artistas, que, por um motivo ou outro, deixam de obter êxito em seu ofício. Já outros tantos escritores, mesmo não tendo essa "facilidade" toda do "bom talento de berço", conseguem, através de esforço, dedicação, enfim, do suor de seus corpos e mentes, desenvolver obras importantes, competentes, de mestres, até. 
Trocando em miúdos, acredito que ocorra na arte o que, muitas vezes, vemos acontecer no mundo do futebol. Vou tentar justificar comparação tão esdrúxula. Muitas vezes, acompanhamos aquele jogador visivelmente talentoso, de bom drible, boa habilidade, mas, que, no final da carreira, não consegue uma reputação de craque. Mil também são os motivos que o impedem ou dificultam seu êxito. Por outro lado, quantas e quantas vezes, acompanhamos aquele jogador de qualidades técnicas apenas medianas, mas que, com uma dedicação grande, uma concentração incrível, não consegue muitas vezes ombrear (vejam o caso de jogadores como Vavá, em 1958, Amarildo, em 1962, Dunga, em 2002, e diversos outros) em êxitos com os grandes mestres do gramado? O que não significa que preferimos o jogador esforçado ao craque, claro que o craque esforçado, preparado e num bom time, conseguirá chegar aos píncaros da glória. 
Entremeando estas categorias de craques desleixados, medianos esforçados e craques dedicados está a maioria dos nossos escritores contemporâneos: os sem (ou com poucas) habilidades que não se esforçam. Esses enchem o mundo de livros, escrevem com uma "facilidade" espantosa, exploram o "talento fácil" até a medula, se vangloriam de seus já quase 50 livros.
A maioria de nós (me incluo com unhas e dentes nesta categoria) é dos que levam jeito pra coisa, tem certa habilidade, mas sabe que se não ralar, se não ler muito, se não for curioso, se não dedicar-se com afinco ao ofício, sucumbirá sem ter alcançado sequer o primeiro degrau do êxito. Por sermos maioria, ficaremos a vida inteira lutando com revisões, remendos nos textos, leituras dos mestres, correndo que nem loucos atrás de editoras, que parecem (sempre) correrem bem mais que nós.
Outro assunto que às vezes me vem à cachola é o da originalidade. Sabemos, e acho que a maioria concorda, que pouquíssimos são os artistas realmente originais, que criam algo inteiramente novo. Aparece um ou dois em cada cem anos (pessoalmente acho que um pouco mais, levando-se em contas as diversas artes) e passam a ser imitados por séculos e séculos. São os Dante, Camões, Fernando Pessoa, Proust, Faulkner, James Joyce, Virginia Woolf, Kafka etc. da vida. Pois bem, depois vêm os imitadores, diluidores. Ou será que mesmo um diluidor, imitador, pode chegar a desenvolver melhor do que o criador aquele "tipo novo de arte"? Será que Clarice não foi (sem querer ofender, claro, os claricianistas de carteirinha) uma imitadora do irlandês Joyce? Um amigo diz que ela deve mais a Hermann Hesse. E daí se tiver sido, se ela tiver partido daquela inédita ideia de literatura e pensado, sonhado em cima e conseguido dar sua contribuição pessoal importante, que, mesmo sem ser totalmente inédita, será necessária e terá novos diluidores, que pululam por esse mundão afora. Mas será que o conhecimento humano, a arte em especial, não será uma grande diluição, imitação, continuação; novos pontos de vistas sobre os mesmíssimos caminhos? Quantos de nós, prosadores modernos, não devemos um tiquinho a Kafka, que deveu a Robert Walser, que deveu a... Quantos de vós, pobres contistas modernos, não devem um tantinho a Borges, que deveu a Marcel Schwob... Quantos não devem um neologismozinho que seja a Guimarães Rosa, que deveu a Joyce, que deveu a... Quantos romancistas não devem a Proust, que deveu a Montaigne, que deveu a... Quantos contistas cearenses não devem um tiquinho a Moreira Campos, que deveu a Tchekov, que deveu a... Acho que estaremos sempre tentando subir um degrau, pouquíssimos conseguirão ir além do modelo, do que inventou o "novo". Imagino que, no fundo do fundo, somos todos uns imitadores, uns diluidores. E ainda bem! Mas claro que todos devemos tentar ir além, dar uma contribuição pessoal em sua arte, tentar uma fresta nova na porta, um ângulo nunca antes utilizado, um efeito distorcido na frase, uma sonoridade sugestiva no verso, enfim: ousar encontrar uma voz própria. 
Também ando matutando sobre se nós, escritores, devemos mesmo ter um estilo próprio, inconfundivelmente pessoal, a ponto de que alguém que nos leia saiba logo de quem se trata. Algo assim como a nossa marca registrada. Alguns grandes autores adquiriram uma maneira de escrever que, de tão peculiar, se tornou inconfundível. Uma crônica de jornal de Clarice Lispector é facilmente reconhecida, mesmo que se omita o nome dela. Um poema de Fernando Pessoa (qual deles?, perguntaria alguém mais atento) poderia não ser tão óbvio. Franz Kafka é outro quase inconfundível em suas parábolas. O alemão W.G. Sebald e o italiano Claudio Magris, para quem conhece minimamente suas obras, também são inconfundíveis. Mas talvez a canadense Alice Munro e a escocesa Ali Smith não sejam tão facilmente descobertas. Dalton Trevisan desenvolveu um tipo de enredo que dificilmente não se descobre de quem é o conto. Rubem Fonseca, idem. José J. Veiga nem se fala... 
Mas penso: Cada livro, cada conto, cada poema não exigiria (seria melhor falar "não necessitaria de") uma maneira própria de ser escrito? Acho que "sim" e "não" também. "Sim" porque alguns escritores muitas vezes abusam das "fórmulas" descobertas, do êxito alcançado por determinadas livros seus, e criam assim como uma "fôrma" na qual cabe tudo: um conto alegre e um triste, um de suspense e um de aprofundamento psicológico. Vemos tais características em escritores de renome, mas muito mais em iniciantes, que na maioria das vezes não pensam, antes de escrever uma história, qual "voz" dará ao seu personagem (quando em primeira pessoa).
Ana Miranda certa vez afirmou que só começa um livro quando "descobre" a voz do personagem (que em terceira pessoa pode muito bem ser a do narrador). Certa vez a vi copiando um livro enorme de determinada época histórica somente para tentar adquirir a "voz", a cor, o cheiro, o ritmo, daquela época. Também responderia "não", porque acho importante que, mesmo encontrando uma maneira própria para cada caso literário, o escritor tenha uma característica sua marcante, mesmo que não tão óbvia e superficialmente visível, que permeie seus livros, um a um. Algo como, me falta palavras apropriadas agora, uma "alma subterrânea", que os seus leitores mais atentos, constantes e sensíveis, vão encontrar em qualquer um de seus escritos. Não seriam pontos de vistas contraditórios os meus? Como não sucumbir às armadilhas fáceis de um estilo próprio, de uma "fôrma" pronta a ser usada em situações distintas? E como adquirir essa voz subterrânea pessoal e não parecer que escreve sempre o mesmo livro, o mesmo conto, o mesmo poema? Perguntas difíceis de serem respondidas como uma fórmula. Cada autor deve tentar fazer uma obra singular, sim, pensada com esmero, paciência. Talvez tenha sido isso o que o escritor que afirmou que o talento não é nada mais do que uma longa paciência tenha querido afirmar nas entrelinhas. 
Para fechar essas minhas ingênuas divagações, digo que aprendi uma coisa muito importante com o mestre moderno do conto, o russo Tchekov, ao afirmar que a arte deveria estar mais preocupada em fazer as perguntas certas do que em encontrar respostas verdadeiras.



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