segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

"Entre Peixes, Museus e Relógios", de Túlio Monteiro



A Gentilândia é um daqueles lugares onde a cidade lembra o que foi lugar onde se vive para conviver, para ver, para sentir, para ouvir, para andar, para conversar. Convivência experimentada no cotidiano, fruto das relações sociais alicerçadas pelo tempo. Por isso, ser gentilandino é um estado de espírito e quem já viveu na Gentilândia sabe que é imprescindível voltar sempre.
Elmo Vasconcelos Júnior, curador do Memorial da Gentilândia.

Começou assim: eram meados 1986 – século passado – quando parti do Farias Brito, colégio onde concluí o segundo grau, para as cadeiras de madeiras toscas do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Tinha arriscado mais uma vez a Arquitetura já que tinha dado um chute no destino, qual ele poderia ter me tornado também geólogo pela Unifor, mas os deuses do vernáculo cismaram porque cismaram de me enviesarem a vida para as bandas da escrita, crítica literária ou coisas que os valham.
       Outro mundo, outros seres, outros loucos. O impacto de ver tanta gente diferente demorou tanto a passar que lá se foram, no mínimo, uns dois meses para me acostumar com aquele mundaréu de cabeludos pirilampeando – se me faço entender – para um lado e para o outro. Restinho dos bichos soltos da geração riponga que estava dando lugar a umas tais “Diretas Já!”. Os ares eram outros, pois o sopro maldito da fuligem de armas militares da tal falada Ditadura que tomou de um dia para outro, vinte anos de uma geração inteira que ainda assim não passou em brancas porque não sincerizar negras nuvens negras. Era hora de os facínoras recolherem-se às suas casernas.
       Eis que acabei por ir descobrindo coisas em conversas sempre repletas de imagens e símbolos, com interlocutores de todos os níveis de sabença. Viventes que me repassavam informações que só aprendidas na base do vamos destapar os segredos do Benfica? Fui, a princípio, sendo conduzido para depois me transformar no timoneiro desse barco chamado vida, passando a desconstruir e retelhar o casario da Gentilândia – reza a lenda que a família de João Gentil perdeu quase todos os imóveis do local nos jogos de cartas e outros azares – suas nuanças, calçadas, parapeitos e um anônimo peixe que até hoje sobrevive em seu silente mergulhar pétreo. Explico: uma meia-parede foi erguida para proteger o prédio do atual Museu de Arte da UFC (Mauc), inaugurado pelo então reitor Antônio Martins Filho em 18 de julho do ano de 1961, onde antes funcionava o Colégio Santa Cecília.
       Pois bem. Voltemos ao ser aquático que lá está fixado pelo espírito moleque de algum pedreiro que, tendo descoberto alguns pedaços de pedra derivada de xisto percebeu que aquelas possuíam exatamente o formato de um peixe. Certamente para não perder a chacota e o chiste – talvez sabendo que naquele recém-construído edifício cultural iriam ficar expostas obras de grandes nomes da escultura e pintura cearense, quiçá nacionais, o laboral trabalhador meteu sua colher de ferro para cima e pronto – está lá para quem tiver a paciência de procurar em uma extensão de cinquenta metros da parede que cerca o Mauc pelo lado da avenida 13 de Maio, quase esquina com avenida da Universidade, 2854, encontrar o que temei em chamar de pequeno sítio arqueológico acinzelado.
       Outros enigmas estão espalhados pelos arrabaldes da Gentilândia/Benfica, sendo tudo uma questão de procurar nas entrelinhas, nos espaços menos esperados podendo ser encontradas preciosidades iconográficas de real importância histórica. É o caso da torre dos quatro relógios da igreja dos Remédios, que fica bem em frente à faculdade de Ciências Sociais e ao lado do Cetrede.
Aos 14 de agosto de 1910, foi concluída a pequena capela de Nossa Senhora dos Remédios, inaugurada com grande festa da qual participaram mais de duas mil pessoas – evento de grande aporte levando-se em conta que Fortaleza possuía exatos 65.816 habitantes – tendo sido a missa celebrada por Monsenhor Bruno Figueiredo, nascido em Aracati (CE), ordenado que havia sido desde 1875; educador de grande nome, lente do Liceu do Ceará à época, sendo vigário-geral do Bispado do Ceará.
       De início e até 1927, a igreja dos Remédios era uma delicada ermida, até serem erigidos os atuais dois corredores laterais, custeados pelo ainda abastado benfeitor do Benfica coronel João Gentil Alves de Carvalho. É daquela época, também, a instalação do relógio de quatro faces ainda hoje badalando as horas que marcam o compasso dos que deslizam a pé, em seus carros e nos agora chamados VLT’s (Veículos Leves sobre Trilhos), os metrôs, primos atuais dos antigos bondes com seus motorneiros a serpentear Fortaleza afora.
       Os quatro mecanismos têm sua história singular: foram projetados para serem instalados no monumento ao Centenário da Independência (1822/1922), cuja pedra fundamental foi lançada aos 23 de julho de 1922, na então praça do Cristo Redentor, situada onde hoje é o início da avenida Monsenhor Tabosa e defronte ao Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura, inaugurado em 28 de abril de 1999 com seus 30 mil metros quadrados muito bem divididos em salas de cinema, teatro, cafés, anfiteatro, praça verde, planetário, salas de estudo, sendo anexado à Biblioteca Pública Menezes Pimentel com seus 70 mil livros e 40 mil títulos diversos, hoje sendo todos digitalizados para as gerações pósteras.
           Retornemos aos relógios! Como era de se previr o monumento ao Centenário da Independência não foi inaugurado no dia 7 de setembro 1922, mas, sim, na véspera de Natal daquele ano – por volta de cinco horas da tarde – numa provinciana e agradável Fortaleza de 104.852 almas como testemunhas. A obra fora encomendada pelo prefeito Ildefonso Albano que deixou a cargo do seu sucessor o coronel Adolfo Gonçalves Siqueira a finalização da obra, executada que foi pelos mestres de obras Antônio Machado, Domingos Reis e Severino Moura. Por ocasião dos festejos tomou a palavra o então arcebispo da capital dom Manoel da Silva Gomes. Os marcadores das horas, como já sabemos permanecem na cúpula da igreja dos Remédios, enquanto a praça Comendador Machado – hoje praça do Cristo Redentor – que também abriga o Teatro São José desde 1915, encontra-se abandonada e habitada pelos novos excluídos que todos os dias chegam a metrópole. O motivo pelo qual o nobre quarteto simplesmente não ter sido instalado na torre em questão foi o movimento pendular causados pelos fortes ventos Aracati que insistem em açoitar nossa cidade, vindos lá das bandas da África, oceano Atlântico, por caminhos alísios soprados de lá para cá. Ventos Aracati-tupi-guarani – ventos bons que vêm do mar, todas as tardes, como uma brisa marítima que ganha força ao ter por canalizador o rio Jaguaribe, que desemboca no mar pelas cidades cearenses de Aracati e Fortim. Desde lá navegando o sertão jaguaribano.  Esse Vento Aracati amigo que ora areja minha memória sobre o Benfica...



6 comentários:

  1. Bosque das Letras a Florir meu Coração de Sonho em Canção! Tulio Monteiro a Dedilhar a Harpa da Saudade com Gratidão pela Gentilândia da Invernia ao Verão!
    Diogo Fontenelle.

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  2. Qdo a biografia dá lugar à memória pela crônica e emerge o Benfica. Bom de ler.

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