Detalhe do quadro de Henri
Fantin-Latour com Paul Verlaine e Arthur Rimbaud.
Em
janeiro passado eu estava em Mons, na Bélgica. Minha visita foi especialmente
motivada pela exposição em cartaz no museu de Belas Artes (BAM) sobre Rimbaud e
Verlaine. Este último poeta ficara preso na cidade durante os anos de 1873 e
1875, acusado por haver atirado no seu jovem amante, Arthur Rimbaud. O período
no cárcere lhe inspirou ótimos textos; talvez por isso, Mons jamais se tornou
um lugar de tristes associações, e um dos meus prazeres (nada mórbido) foi
caminhar pelas ruas lendo os versos, colados nos muros ou pintados no chão, dos
poemas feitos por Verlaine naquela época.
A
exposição, porém, trouxe um conflito que ainda persegue meus pensamentos. Até
onde a biografia de um artista deve ser exposta, exibida como matéria de
interesse para a compreensão da obra? A mostra não poderia ter sido mais
completa em fortuna literária e iconográfica: pelas salas do BAM, o visitante
encontrava estímulo didático, estético, lúdico… Mas também (e esta é a questão)
um certo fetichismo. De que outra maneira eu catalogaria a atenção aguda com
que vários senhores fitavam as páginas de um processo criminal, em folhas
amareladas, dentro de vitrines? A letra do juiz acusava Paul Verlaine de
sodomia e tentativa de assassinato – e as palavras polêmicas faziam os óculos dos
senhores escorregarem, com maior voracidade do que aplicavam diante dos
originais na minúscula grafia do poeta preso.
O
ponto máximo – inclusive pelo destaque físico – foi conferido ao revólver.
Dentro de uma redoma alta, incrustada numa parede pintada de vermelho, víamos a
autêntica arma da qual saíram as balas que atingiram Rimbaud, não fatalmente,
como sabemos. O objeto, assim posto, parecia resumir toda a vida impetuosa de
Verlaine, os seus tormentos e excessos. Diante dele, os visitantes passavam em
completo silêncio, lentamente contemplando o revólver como se ele fosse uma
relíquia, um tesouro resgatado das profundezas.
Aquele
símbolo, que tão ostensivamente associava o desregramento à genialidade, para
mim fez a exposição derrapar no sensacionalismo. Nunca aceitei crimes ou atos
insanos enquanto sintomas de talento. Qualquer pessoa – seja ou não
especialmente inteligente ou dotada – pode sofrer de descontroles. O problema é
quando estes passam a ser celebrados como
gesto essencial para a arte: uma justificativa que endossa a velha aliança
entre criatividade e loucura. Óbvio que cada obra é produto de um ser
individualíssimo, impregnado por cada uma das suas circunstâncias, mas (aqui
entra de novo o tal conflito) em que medida a posteridade, a crítica ou
qualquer sujeito alheio àquela existência pode manipular seu trajeto íntimo?
Se
a vida parece seguir um percurso narrativo – embora cheio de sinuosidades (e
várias surrealidades, para alguns eleitos) –, quero defender que as biografias
permaneçam histórias secretas, pelo menos na sua maior medida. Não se trata
apenas de um pudor como resguardo ao mistério (elemento que, confesso, sempre
me fascina), mas sobretudo da certeza de uma impossibilidade na execução da
pesquisa. Uma vida não pode ser contada. Pode ser inventada ou interpretada a
partir de certos episódios – mas estes não bastam. Os ingênuos acreditam que a
intimidade autoral pode ser devassada e que, fazendo isso, tem-se uma melhor ou
mais profunda interpretação da arte. Para os demais, conhecer uma biografia
equivale ao prazer construído pela ficção: imagine esta época, faça de conta que conhece esta pessoa, finja que
penetra nos seus sentimentos etc.
Se
alguns dados biográficos são essenciais como âncoras de compreensão de um
texto, eles não podem – da mesma forma que as âncoras – impedir o livre
navegar. O revólver no BAM (para aproveitar o trocadilho) teve o disparo
mutilador de um resumo. Foi tão impactante a sua presença, que ameaçou reduzir
dois poetas a um único evento. É a esse sentido restritivo – escolhendo o
supérfluo como máscara que ofusca a riqueza – que me oponho. O caminho da vida
é muito mais rico. É também filosoficamente inviável de ser comunicado por
inteiro, mas isso não se torna desculpa para que simplifiquemos o processo de investigar
ou obtenhamos saciedade através de um rótulo.
Verlaine
e Rimbaud serão, como indivíduos, para sempre inacessíveis a mim e meus
contemporâneos. A proximidade ocorre por meio de seus personagens, suas figuras
históricas construídas, em parte por fatos cronológicos, em parte por
suposições e fantasias. Verlaine virou um fantasma, tanto quanto Dom Quixote,
Raíssa Mikháilovna ou Alberto Caeiro, por exemplo. É um tipo de ancestral, de
quem distingo as feições (descritas ou fotografadas) e os relatos. Por
mergulhar em suas ideias e palavras, posso cultivar a ilusão de conhecê-lo –
mas no fundo não esqueço que o tempo nos distanciou definitivamente. Jamais
apertarei sua mão, saberei a forma com que seu sorriso crescia no rosto ou
poderei observá-lo de costas, enquanto caminha. Realizou-se o que ele afinal
previu nos versos de Lettre:
“Si bien qu’enfin,
mon corps faisant place à mon âme,
Je deviendrai fantôme à mon tour aussi, moi,
Et qu’alors, et parmi le lamentable émoi
Des enlacements vains et des désirs sans nombre,
Mon ombre se fondra pour jamais en votre ombre.”
Enquanto
leitores, estejamos satisfeitos por meramente alcançar esta fusão de sombras.
Tércia Montenegro é
escritora, autora do romance Turismo para
Cegos, entre outros (Companhia das Letras, 2015).
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