sábado, 26 de novembro de 2016

"Vida Linda de Morrer!", crônica de Raymundo Netto para O POVO


A dona Morte estava triste. Tirante uns diligentes suicidas – muitos deles querem se matar, mas não querem morrer –, era mesmo a indesejada das gentes.
Há zilhanos, desde que o mundo é mundo vasto mundo, transitava ela por aqui, sempre à espera do instante solene de sua existência. Sim, existência, porque vida mesmo ela não continha. Seria quase uma condição sine qua non para ela, declinar de qualquer estertor de vidas, não se apegar a nenhuma delas, ser no mundo a grande cultora de cascas vazias. Assim, pensava-se, fora ela criada e experimentada na mais suprema incompreensão, sem possibilidade sequer de curtir seus frios seguidores e sem nunca se permitir prazer nenhum. Afinal, o prazer, assim como a alegria e o amor, dizem, é condição de vida. Entretanto, no nada absoluto do mundo, mantinha ela um segredo: morrera de amores uma única vez na vida. Fora pelo poeta Dante, que conseguira convencê-la, numa promessa de Vita Nova, que o amor seria o prelúdio da morte, estratagema depois revelado para aproximar-se da sua amada Beatrice. Daí, sepultou de vez todas as afeições e o seu coração traído com Dante foi-se. E a foice com Dante.
É raro que as pessoas dediquem seu tempo – de vida, porque o tempo da morte é o silêncio – em aprender a morrer. Já dizia Sêneca, o moço desafeto de Messalina, “quem não souber morrer bem, terá vivido mal”.
Aliás, a dona Vida, sua irmã, ao contrário, vivia em regalos, quase uma parteira, celebrada e lembrada em festejos, desejada e aplaudida por todos em sopros de velinhas e de línguas de sogra, estampada em camisetas de feira e panos de prato. Sucesso de público e de crítica – mais dessa segunda, pois criticar a vida alheia é quase um exercício, sabido que a língua é um músculo.
A pobre dona Morte, não negava, colhia invejas da irmã. Com os pés calejados de tanto acompanhar despojos, sem qualidade de vida ou autoestima, vista com temor e desconfiança – há quem diga que é ilusão, uma espécie de “black-fraude” –, a Morte naquele dia rebelou-se. Plantou o pé e bradou ao infinito: “Nem morta!” E nós sabemos que juramento de morte sempre foi coisa que deu certo – ou muito errado – por aqui.

O fato é que durante esse tempo, o sofrimento do mundo aumentou. Ora, a imortalidade é um inferno! Foi quando ela percebeu que, mesmo contra a sua vontade, sua presença inda seria sentida por todos. Pessoas sofriam a perda de amores, de amigos, de afetos, das horas e de outros bem-quereres na distração eterna de todos os dias. Sim, ela seria o que há de mais presente e definitivo na rotina mundana. Pôs-se a sentir na carne a dor mortal dos corações feridos a suspirar diante de porta-retratos, de reflexos em espelhos, do convite para o café que não chegou, na audição daquela música da juventude, no ecoar das gargalhadas daqueles filhos, agora adultos, que não moram mais ali. Perder é a morte em prestações. A Vida, chama breve, uma sala de estar das tintas pálidas da Morte, servindo-lhe aos poucos – às vezes, aos montes. O que fica é a dor. E a dor que não passa nunca se chama saudade, e como sussurrou em seu ouvido o cronista, é na morte onde ela mora! Foi quando a Morte despertou e se viu, em essência, tão igual a todos os mortais, no vagar aprendiz do cortejo a caminho da solidão.


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