“Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente
chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a
imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca
convivi com pessoas muito ajuizadas.” (Nise da Silveira)
IMPOSSÍVEL um filme conseguir retratar a
mulher que foi e é a psiquiatra alagoana Nise
da Silveira (1905-1999).
Assim, Robertor Berliner, diretor de Nise: no coração da loucura,
que estreou hoje e é baseado na biografia escrita por Bernardo Horta, Nise: arqueóloga dos mares, recortou
apenas um período de sua vida.
O filme tem início em 1944. Nise, que
havia se formado em medicina numa turma em que era a única mulher entre 157
homens – em sua graduação já apresentava ensaio sobre a violência contra a
mulher –, e que passara dois anos (1934 a 1936) presa com acusação de ser
comunista – tornando-se personagem de Memórias
do Cárcere do conterrâneo Graciliano Ramos e companheira de cela com Olga Benário
– e mais 8 anos em semiclandestinidade, afastada do serviço público, voltava
agora às funções no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no bairro Engenho de
Dentro, Rio de Janeiro.
Desprestigiada entre os colegas e discordando
das técnicas convencionais da época, consideradas avanços, como o eletrochoque,
a lobotomia, a solitária, é punida, sendo locada num setor abandonado do
hospital, o Setor de Terapia Ocupacional.
E foi nesse setor que ela conseguiu
realizar a sua prática “não-violenta” de psiquiatria em seus “clientes” – ela dizia
que “pacientes” eram os membros da equipe que cuidavam dos clientes –, origem
de algumas das bases da atual terapia ocupacional no tratamento psiquiátrico e
das obras que se encontram, desde 1952, no Museu de Imagens do Inconsciente do
Rio de Janeiro, cujas principais coleções são tombadas pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
E é esse o momento do filme, estrelado
por Glória Pires, fazendo aquilo que ela faz melhor: atuar! Ao seu lado,
Cláudio Jaborandy, Simone Mazzer, Fabrício Boliveira, Augusto Madeira, entre
outros.
A obra é envolvente, escandalosamente
humana, esbanjando afeto, toque, compreensão, empatia, dignidade e a coragem
absoluta do insistir e transformar, coisa que só no amor, no verdadeiro e raro
amor, se consegue forças para tanto.
Como a grande revolução da prática
médica de Nise se baseava na utilização da expressão artística e da
sensibilidade, daquilo que a arte consegue explorar do inconsciente humano, no
filme, os clientes esquizofrênicos de todos os tipos exercitam essa arte com colorido
intenso, em momentos nos quais os seus espectadores, nós, deleitam-se da vida, do brilho do sol e do
espírito e do prazer original de contemplação, refletindo sobre o nosso “engenho
de dentro”, a nossa capacidade de colocar para fora toda essa nossa arte – e/ou
angústia - escondida atrás de janelas que não se abrem nunca.
Oportunidade ímpar de lavar a pele dos
ódios, da desesperança, da intolerância e de tudo aquilo que nós não temos mais
coragem de enfrentar. Assistam!
Em tempo:
Nise criou, em 1956, a Casa das Palmeiras, primeira instituição a desenvolver
um projeto de desinstitucionalização de manicômios no Brasil.
Em tempo 2: Uma surpresa emocionante ao final.
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