sábado, 6 de fevereiro de 2016

"Cartas de Amor", de Ana Miranda para O POVO



Ilustração: Carlus Campos

Algo que me admirou, quando voltei a morar no Ceará, foi o amor de homens por suas esposas. Notei logo, desde quando assisti a uma festa em que senhores discursavam. Era uma festa de trabalho. Mas cada um deles aproveitou o momento para fazer uma declaração de amor. Verdadeiras cartas de amor ditas em voz alta. Isso pode ter vários significados, mas como meu pai foi a vida toda apaixonado por minha mãe, e assim aprendi a acreditar no amor matrimonial, interpretei como gestos de puro sentimento.
Guardo uma coleção de cartas de amor escritas por meus pais, nos anos 1930, 1940. Estavam noivos e se separaram por um período, quando ela foi estudar na Escola Doméstica de Natal, preparando-se para o casamento; ou, depois de casados, durante alguma viagem de trabalho do “doutor”. As cartas de amor são sempre saudosas, doloridas, porque são escritas quando o ser amado está distante. Tratavam-se por “minha filhinha”, “meu filhinho”, usavam diminutivos carinhosos: “Aceite mil beijos e saudades do maridinho só seu”. E ela, com uma letra harmoniosa e delicada: “Bem, meu futuro maridinho, aceita muitas saudades e beijos da tua noivinha que muito te quer”. Ele estava sempre preocupado com a saúde dela, e ela, com o excesso de trabalho a que ele se dava. Pode-se perceber que ele ainda era senhor de si, quando noivos, mas depois do casamento demonstra o quanto está arrebatado pela paixão. Por essas cartas, redescubro meu pai como um novo homem.
Lembrei-me dessas cartas e da festa noturna de declarações de amor quando estive a folhear um livro com as cartas trocadas, desde 1882, pelo estudante de direito, Clóvis Beviláqua, com sua “boa e querida” musa, a escritora Amélia de Freitas, após se conhecerem numa praia do Recife – ela quase se afogava e ele a salvou. Ainda uma vez, a emoção destrona a razão, e o rapaz escreve “como quem conversa, sem método, sem concatenação, sem mesmo pensar no que disse nem no que vou dizer”, achando-se um tolo. Nas cartas, um pouco de filosofia, de usos e costumes, de paisagens, sobretudo a história de um eterno amor, que ficou registrado nesta jura: “Juro por quanto há nobre e grande ... que te adoro, que te idolatro, que és o meu mundo e a minha glória, minha ambição e o alvo de meus anelos, juro que jamais se apagará em meu seio este ardor que me é alento e vida...”. Essa jura me faz lembrar as declarações de amor, naquela noite de discursos, assim que cheguei ao Ceará.
Há toda uma literatura de missivas de amor, como as cartas de Graciliano Ramos para a noiva, Heloísa Medeiros. Ela era uma moça de 18 anos, e Graciliano, um viúvo de 35, pai de quatro filhos, empregado na Prefeitura de Palmeira dos Índios. As sete cartas, publicadas em livro, impressionam pelo derramamento de Graciliano; ele, sempre tão contido, reclama da frieza de sua pretendida que lhe mandava cartas de duas linhas; provam que não há matemática na psicologia de um ser apaixonado. “Adeus, minha noivinha amada”. “Adeus, minha santa”. Mas ele continua a ser o homem de poucas palavras, mordaz, negativista: “Eu te procurei porque endoideci por tua causa quando te vi pela primeira vez. É necessário que isto acabe logo. Tenho raiva de ti, meu amor.” Ele diz que não sabe mentir, e “os outros me veem por dentro melhor do que por fora”. Com uma série de confissões amargas, as cartas não esclarecem o “mistério” Graciliano, mas ficamos conhecendo melhor seu temperamento. São conhecidas cartas de amor de Machado de Assis a Carolina, de Dostoievski a Anna Grigoriévna, de Victor Hugo a Juliette Drouet, de Plínio a Calpúrnia; de Mark Twain, de Flaubert, Mozart, Darwin, Beethoven, lord Byron, Robert Browning, a suas amadas, ou de mulheres a seus amados, como Florbela Espanca e Mariana de Alcoforado.
Mas não é preciso ser um escritor para arrancar suspiros do ser amado. A carta de amor pertence a todos os que amam. Ao contrário do que disse Fernando Pessoa, que todas as cartas de amor são ridículas, e se não fossem ridículas não seriam cartas de amor... Ele mesmo escreveu a sua amada Ofélia: “Meu Bebezinho, minha almofadinha cor-de-rosa para pregar beijos (que grande disparate!)” Nenhuma carta de amor provoca riso ou escárnio, a não ser naqueles que têm medo de amar. Portanto, escrevamos cartas de amor, ainda que fiquem guardadas nas gavetas, sem endereço. Escrevamos para a pessoa amada, para nós mesmos. Guardemos nossas cartas de amor em maços perfumados, em caixinhas macias, elas serão a lembrança mais doce de um tempo que nunca passou.


Obs: O livro em questão é De Clóvis para Amélia, org. José Luís Lira, Ed. UVA/ASEL.


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