Uma das coisas que eu amo em Fortaleza é a
quantidade de ruas batizadas com nomes de escritores da prosa ou da poesia, nos
meus percursos. São muitas. E ruas importantes.
Ao entrar na cidade, e a todo tempo, tomo a rua
Padre Antônio Tomás, nome de um poeta que não quis publicar nenhum livro e
ainda assim ficou na história literária; foi o primeiro Príncipe dos Poetas
Cearenses e autor de sonetos puros, nítidos, como este:
Muito
cedo senti que a poesia
tinha a
sua apoteose no soneto.
Eram
tempos saudosos em que lia
duas
quadras gentis, mais dois tercetos.
Dentre as
flores o soneto lembra a rosa,
dentre as
joias luzentes, o diamante,
das
mulheres, a musa mais formosa,
dos
perfumes, o olor inebriante.
Tu, poeta, que buscas nesta hora,
doce
pólen, a mítica ambrosia,
acharás
no soneto, sem demora,
a pintura e moldura da magia,
o legado
dos clássicos de outrora,
a beleza
inconsútil da poesia.
O meu posto de gasolina favorito fica na avenida
Rui Barbosa, e passo ali lembrando de nosso Águia de Haia, o sujeito mais
inteligente deste país, que foi jurista, mas também escritor, filólogo e
tradutor. E trafego na que leva o nome do Barão de Studart, o qual, mesmo tendo
escrito excelentes livros de geografia, biografia, de medicina, era um
brilhante historiador, que nos deixou centenas de textos valiosos sobre a
história do Ceará.
Outra rua com nome de escritor é a Domingos
Olímpio, da qual pego um trechinho quando vou ao jornal e, quando quebro a
esquina, lembro do enigmático romance Luzia-Homem.
Paula Ney, o boêmio e eloquente poeta, companheiro de Olavo Bilac, é rua
transversal que me leva à casa de amigos, onde costumo ir. Raramente, mas já
passei na rua Justiniano de Serpa, poeta da Abolição, nascido no Aquiraz e dono
de uma obra poética condoreira, guindada, hiperbólica.
E sempre que saio da cidade passo pela avenida que
homenageia Antônio Sales, um dos fundadores da Padaria Espiritual, e, claro,
sinto vontade de rir nessa rua engarrafada. Apesar de poeta, Sales ficou mais
conhecido por seu único romance, de título profundamente cearense: Aves de arribação. Relendo suas poesias,
encontrei esta, que parece ter sido escrita hoje de manhã:
Este país vai todo em polvorosa!
A anarquia por toda parte impera,
a lei sucumbe inerme e dolorosa,
a tirania estúpida prospera.
Da traição medra a planta venenosa,
a semente dos ódios prolifera,
a dilapidação campeia e goza
das vacas gordas a ditosa era...
As eleições são conto de vigário,
couro e cabelo tira-nos o erário,
geme a lavoura, os bancos não têm fundos.
Mas – para consolar-nos deste inferno –
brevemente a mensagem do governo
dirá que estamos no melhor dos mundos.
Voltando do aeroporto para casa, percorro a avenida
com o nome de Oliveira Paiva, autor do romance Dona Guidinha do Poço, leitura inesquecível de minha adolescência e
que continua me fascinando. Tudo gente do século 19. Mesmo a rua onde moro já
se chamou Professor Manoel Albano Amora – mudaram para o nome de um pescador,
como ditam os sabores da política. Albano Amora é autor de Crônicas da Província do Ceará, e de livros de geografia
sentimental, síntese histórica, e Direito. Passo às vezes na avenida
Historiador Raimundo Girão, autor de mais de cinquenta títulos, de história,
geografia, ou apontamentos genealógicos. E, pensando bem, nasci num bairro que
tem o nome de um livro, o romance de Alencar, Iracema, obra-prima da literatura! De formas que, pelo menos
simbolicamente, quando ando por Fortaleza, chego em casa como se tivesse
passado o dia numa imensa biblioteca.
Não sei se uma cidade com um grande número de ruas
com nomes de padres é uma cidade religiosa, assim como não sei se a nossa é uma
cidade literária. Mas Fortaleza quis manter viva a memória de escritores, dando
seus nomes a ruas. Parafraseando o mestre Câmara Cascudo, a alma da cidade está
na sua toponímia.
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