sexta-feira, 13 de março de 2015

Leitura crítica de "Dicionário Amoroso do Recife", de Urariano Mota, por Paulo Verlaine


O Dicionário Amoroso do Recife, do escritor pernambucano Urariano Mota, transporta-nos a figuras, fatos, locais e paisagens da capital pernambucana em épocas diversas. É o Recife cantado em prosa, no estilo leve, elegante – mas sem afetação – do autor, e em versos dos grandes poetas por ele citados. 
Urariano Mota, recifense do bairro de Água Fria, é autor dos romances Soledad no Recife, (baseado na vida de Soledade Barrett Viedma, amante do cabo Anselmo e por ele traída e entregue à tortura e morte pelos agentes da ditadura brasileira); e O Filho Renegado de Deus. (LEIA MAIS)

Pelas ruas do Recife
O Recife – o Dicionário explica o porquê do masculino – tem encanto especial para mim. Depois de Fortaleza, é a talvez a única capital de estado brasileiro onde eu poderia morar e me sentir em casa. A outra opção seria mais distante: o Rio de Janeiro. Já estive no Recife mais de uma dezena de vezes. Espero voltar lá outras dezenas. Que Fortaleza – no feminino – não tenha ciúmes...
O túnel do tempo da memória me leva ao Recife de 1958, ano em que, pela primeira vez, aos oito anos de idade, conheci a Veneza Brasileira. De navio. Viagem mágica de dois dias, saindo do Porto do Mucuripe (Fortaleza), passando por Natal (RN), a bordo do navio Itaité, do Lóide Brasileiro, um dos famosos ‘itas’, em companhia da minha mãe, a poetisa e cronista Dulce Pereira, e do meu irmão Pedro Henrique (já falecido). De primeira classe: apartamentos com beliches, e direito a frequentar o restaurante de bordo, cardápio variado e orquestra para animar bailes noturnos.
Ao chegar à capital pernambucana o garoto de oito anos conhece a primeira metrópole de sua vida. Recife estava no auge. Ainda povoam intactas, na minha mente, imagens dos anúncios coloridos dos prédios do centro da cidade refletidos nas águas dos rios Beberibe e Capibaribe, a fonte luminosa do Parque 13 de Maio, o zoológico do Parque Dois Irmãos, os bondes (Fortaleza já havia desativado esse meio de transporte e eu não os conhecia), os pés de jambos, as ruas e bairros com nomes poéticos ou estranhos (ruas da Aurora, da Hora, do Hospício), a casa dos meus tios, primos e primas, na Rua Visconde de Suassuna e tantas outras lembranças.
Entre as curiosidades que podem causar estranheza ao visitante de primeira viagem é a existência de um bairro, no Recife, chamado Recife. Trata-se, na verdade, do Recife Velho, ou Recife Antigo, na área central, mas o povo de lá diz: ‘Vou ao Recife’ (referindo-se ao bairro).
A Fortaleza do final da década de 1950, muito diferente da de hoje, era provinciana demais. O Recife deu-me o primeiro choque metropolitano.
Depois, voltei mais vezes: adolescente, em 1967, no fusca do meu primo, o engenheiro Pedro Ney da Silva Pereira e, nos anos 80, mais viagens, de ônibus, de avião. As recordações agora giram em torno da Praia de Boa Viagem, dos ônibus elétricos (que duraram pouco em Fortaleza), dos cabarés do Recife Velho (já não existem mais).
Em 2000, repeti o gesto de minha mãe: levei dois de meus filhos (Rebeca e Fernando, ela então adolescente, ele pré-adolescente), ao Recife, não mais de navio, mas de ônibus.  

De A a Z
O Recife que conheci pela primeira vez em 1958 está no Dicionário do Urariano Mota. O de 1958 e de outras décadas, mais distantes, mais próximas e atuais. Como se trata de um dicionário, a leitura pode ser iniciada por qualquer verbete, a gosto do leitor, pelo início, meio ou fim. Foi o que fiz logo que recebi o livro: li os verbetes que mais me interessavam de imediato, acompanhando pelo índice. Depois, ‘comecei do começo’, fui de A a Z. Maravilha.
Brota das páginas o Recife com cheiro de mangue, de caranguejo, de frutas da terra e de urina que se sente ao passar pelas pontes dos rios Beberibe e Capibaribe. É o aroma da cidade. Sem esse conjunto de odores não se pode dizer que se está no Recife. Que o leitor viaje, de A a Z, nos verbetes, surfando no estilo agradável e escorreito de Urariano Mota.
Não conheço pessoalmente o autor, mas sinto como se nós dois fôssemos amigos de longa data. Conheci-o no finado e saudoso Orkut e suas diversas ‘comunidades’, principalmente as relacionadas ao Nordeste, seus músicos e poetas, entre os quais o pernambucano Luiz Gonzaga e o cearense Humberto Teixeira. Debatemos muitos assuntos: música, Nordeste, política e literatura. Até a internet já tem seus saudosistas. Eu sou um dos saudosistas do Orkut.  
Para não dizer que falei apenas de flores, senti falta, no Dicionário, de referências a outros ícones do Recife: da cirandeira Lia de Itamaracá; da Feijoada do Jaime (era no bairro Pina. Não existe mais), do lendário e erótico edifício Holiday (em Boa Viagem, um famoso ‘treme-treme’, semelhante ao Jalcy, da avenida Beira-Mar, de Fortaleza, só que muito maior); do Íbis Sport Club, ‘o pior time do mundo’. Recifense gosta de exagerar até quando reivindica título de pior.
Mas há exemplos de exagero para melhor e maior. Um deles: dizem que os  rios Beberibe e Capibaribe se encontram no Recife para formar o Oceano Atlântico.  Hein?
Voltando às possíveis omissões que citei, é preciso reconhecer, no entanto, que o livro é um dicionário, não uma enciclopédia virtual para caber tudo o que a gente quer. Que o autor me perdoe a exigência excessiva.
Vou citar – e comentar aqui –, sem observar ordem alfabética, apenas trechos de alguns verbetes (destacando graficamente as letras iniciais), que chamaram mais a minha atenção. Os demais leitores talvez tenham outras preferências. Que comprem o livro. Leiam todos os verbetes. Deleitem-se com o primoroso estilo do Urariano Mota. Eis a minha seleção:

Gilberto Freyre
Urariano Mota trata Gilberto Freyre, o autor de Casa Grande & Senzala, com um respeito que beira a veneração, mas não deixa de criticá-lo com severidade. Para mim o ponto alto do livro é a análise feita por Mota sobre o grande sociólogo pernambucano:
‘Casa Grande & Senzala, dos livros de análise histórica surgidos no século XX, é para mim o que vai atravessar as nossas e vindouras gerações. Tem a qualidade de ser bem escrito, e bem escrito de tal forma que mais parece literatura, romance. Esse Freyre era um homem de extrema sensualidade, que tinha, entre outras perversões, o gosto da prosa. Não há livro científico tão bem escrito como Casa Grande & Senzala. Minto: talvez só A Origem dos Sonhos, de Freud’.
Agora vem a crítica severa, mas não destruidora: ‘Mas ele é, seguramente, o homem que glorifica a colonização portuguesa. E, nesse caso, tão brasileiro pela dissolução da crueza com ares de fazer graça, entre um pigarro no cachimbo e um costume bárbaro, como quem dilui a violência com uma piada. (nota do blogueiro: um Gilberto Freyre precursor do cineasta Quentin Tarantino?) Nesse caso particular, é preciso vencer Gilberto  Freyre. Vencê-lo também de uma reação à influência avassaladora e paralisante. A sua orientação e influência, como uma gripe inescapável, se estendeu sobre a prosa e poesia dos nossos mais brilhantes escritores, de José Lins do Rego a Manuel Bandeira e Ascenso Ferreira.... Esse poder e esse encanto têm que ser mortos. Mas antes, ele deve ser muito estudado... Vencê-lo como uma forma de superação necessária. E muito estuda-lo, voltando a suas  luzes de escritor, de gênio. Superar é uma forma de assimilar a tradição’.

O Centro do Recife
Descubro, para minha surpresa (nas minhas últimas visitas à cidade, quase sempre curtas, não cheguei a perceber essa transformação) que a área central do Recife se transferiu para outros lugares! Urariano fala do antigo centro, hoje decadente, principalmente à noite: ‘O centro do Recife era lugar onde a vida florescia, para o trabalho, para namorar, agir na política e na cultura. E o mais curioso era a percepção que nos assaltava persistente: o centro do Recife era eterno, ou dito de outra maneira, jamais mudaria. Guararapes, Bar Savoy, Cine Trianon, Aky Discos, Botijinha, Sorveteria Gemba, Bar da Brahma’.
A boa surpresa: ‘O centro de Recife hoje não está mais compacto em um só lugar e direção... O centro da cidade se deslocou para o Recife Antigo, com a Livraria Cultura, com os prédios culturais dos Correios e da Caixa Econômica, com o Centro de Artesanato de Pernambuco e o Memorial Luiz Gonzaga. O centro emigrou para a Rua de Santa Cruz, onde se agita o Mercado Público da Boa Vista. Ele foi para o conjunto de bares enfileirados pelo Bar Central, na Mamede Simões, por trás Rua da Aurora, onde se concentram os músicos de choro do Recife... O centro corre também para o bairro de Boa Viagem, onde se criou o Parque Dona Lindu, com shows e concertos no fim de semana’.

Qual o gênero da cidade?
É masculino. Urariano Mota explica na letra Q do dicionário: ‘O batismo da cidade veio desses muros aflorados por milênios na capital pernambucana: arrecife ou Recife’. O nome é masculino desde a origem. Diz mais: ‘Falar, dizer dE Recife, Em Recife, ou Recife, sem o artigo masculino antes, é o mesmo que renegar as mais belas vozes da cidade, e assim desprezar o excelente, que é o modo mais vil de ignorância’.
O autor está correto. Ninguém diz: ‘Sou de Rio de Janeiro’. Rio, o curso d´água, é palavra masculina. O inverso também acontece: ‘Venho da Bahia’ e jamais ‘venho de Bahia’. Baía, acidente geográfico que deu nome ao estado brasileiro, é palavra feminina. Os baianos referem-se também à capital, Salvador, como Bahia, porque se trata de Bahia de São Salvador. Mas isso é outra história.
O gênero da cidade de Fortaleza é feminino. Vem da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, o antigo forte Schoonenborch, tomado dos holandeses pelos portugueses no século XVII.

Sotaque do Recife
Urariano Mota: ‘Leia-se, portanto, antes de mais nada, o título como ‘u sutáqui do Ricife’. Na verdade, raro as nossas vogais ‘E’ e ‘O’ se pronunciam como se escrevem nas sílabas. Nem muito menos, como ‘ê’ e ‘ô’, ave Maria. Aliás, ‘ave’ é bem ilustrativa da variação, ora se pronuncia como ‘avi’, ora como ‘avé’, como se escuta nos cânticos das igrejas católicas do Nordeste. Assim também na palavra Recife, que ora é ‘Ricife’, ora é ‘Ré-cife’.’
O autor limita-se, no entanto, à questão fonética. Esquece um ponto importante: o ritmo do sotaque pernambucano ou recifense, apressado como o frevo. O fortalezense – ou quase todo cearense do litoral – percebe isso. E é notado também quando está no Recife. Também falamos cantado, mas o ritmo é diferente: mais lento, arrastado, como um baião, xote ou toada. Outro ponto: o pernambucano omite o artigo definido antes de nome próprio: ‘Você viu Maria?’, ‘você viu Paulo?’. O fortalezense diria: ‘Você viu a Maria?’, ‘Você viu o Paulo?’. Já o cearense do Cariri (Sul do Ceará) fala muito parecido com o pernambucano: na fonética, no ritmo, na linguagem e até na omissão dos artigos definidos antes dos nomes próprios.
Dicionário Amoroso do Recife faz protesto que merece registro e apoio. O autor se insurge, com muita razão, à tentativa da TV Globo do Recife de modificar o sotaque pernambucano na linguagem dos repórteres e narradores de noticiários. ‘Bê-bê-ri-be’ (como o carioca diz) em vez de ‘Bi-bi-ri-be’ (no autêntico linguajar pernambucano). Urariano está corretíssimo. Tentativa de alterar sotaque (ou fonética) de um povo é crime cultural.

Hélder Câmara
Este era um cearense de Fortaleza, recifense de coração, cidadão do mundo. Diz o Dicionário Amoroso do Recife: ‘Quem foi jovem no Recife, no Brasil depois de 1964 sabe: Dom Hélder Câmara era o arcebispo vermelho, o perigoso comunista disfarçado em padre, um ilustre morto-vivo cujo nome e fotos não apareciam nos jornais, apesar de ter sido o brasileiro mais famoso no mundo, depois de Pelé. A sua prática sacerdotal, em um Recife que vinha da pedagogia de Paulo Freire, de governos socialistas, longe estava da simples pregação da caridade, ou de se mostrar superior ao povo miserável. Ao mesmo tempo, os comunistas jamais pensaram, sequer por hipótese, que um arcebispo fosse um dos seus. Havia encontros, havia diálogos entre suas políticas, com mais de um ponto de conflito’.
’Quem já leu suas crônicas, que em boa parte foram reunidas no livro Um Olhar sobre a Cidade, entenderá o que vou dizer. Para mim, ele escrevia textos modelares de crônicas radiofônicas. Nessas crônicas há um escritor, que deveria corar de vergonha muito imortal da Academia Brasileira de Letras’.

Mércia Albuquerque, advogada eterna
Não poderia deixar de ter verbete especial para Mércia Albuquerque, notável advogada de presos políticos pernambucanos durante o período da ditadura militar. ‘A doutora Mércia Albuquerque era um ser passional... Mércia, mal saída da universidade, resolveu defender Gregório Bezerra porque viu o comunista arrastado por uma corda por uma corda no pescoço em 1964, em Casa Forte’.
O Dicionário retrata bem a figura de Mércia Albuquerque. Lembro que Fortaleza teve também a sua Mércia Albuquerque: a figura elegante da advogada Wanda Rita Othon Sidou. Ou Recife teve a sua doutora Wanda? Dá no mesmo. Branca, com cabelo negro e uma charmosa mecha grisalha, a doutora Wanda – que também já partiu – foi o anjo da guarda dos presos políticos cearenses.

Ariano Suassuna
No verbete sobre o Ariano Suassuna, Urariano Mota narra conversa que manteve com o autor de O Auto da Compadecida.
‘Um dia chegamos para entrevistá-lo, ao fim do horário de suas aulas na universidade. Isso foi há mais de quinze anos. Ele foi logo dizendo que tinha desistido da entrevista, acertada antes. Sentamo-nos então em um banco de  pedra, no pátio da Escola de Artes’.
A conversa saiu melhor do que a cancelada entrevista formal. Ariano Suassuna falou sobre tudo. O autor do Dicionário Amoroso do Recife reconhece: ‘Por razões inesperadas, o que para um repórter é aquilo que não faz parte da agenda, não percebemos que a negação da entrevista era mentirosa’.
Felizmente Urariano Mota reproduz no livro a ‘conversa-entrevista’ de modo magistral. Que o leitor procure no livro. Não vou contar aqui.

Bar Savoy
‘Ele ficava na Avenida Guararapes, número 147. Foi o primeiro bar do Recife no afeto, e podemos até dizer, o primeiro sem segundo. A memória desse bar deveria ser retida por todo pernambucano de origem ou formação.
Nele passaram geração de intelectuais, escritores e artistas que honrariam qualquer cidade do mundo. Os broncos lembram logo os nomes de Sartre e Rosselini, que um dia foram às mesas do Savoy no Recife. Mas com todo o respeito e débito ao filósofo e ao cineasta, não digo que passaríamos bem sem eles – o nosso espírito rude e selvagem jamais chegaria a tanto – mas digo que Sartre e outros apenas se somaram a esta, vá lá, com o devido perdão da palavra, a esta plêiade: Aloísio Magalhães, Osman Lins, Ascenso Ferreira, Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna, Capiba, Lula Cardoso Ayres, Vicente do Rego Monteiro, Abelardo da Hora, Francisco Brennand, Mauro Mota, João Cabral, Gilberto Freyre... e para o  gosto particular do Savoy e dos recifenses mais líricos, a sua maior estrela: o peso pluma Carlos Pena Filho’.

Nelson Rodrigues
‘O recifense Nelson Rodrigues, desde o nascimento em uma sexta 23 de agosto de 1912, atravessou muitas vidas e rostos. E contradições das mais diversas, entre elas até sua origem de nascimento e natureza. Por exemplo, já aqui escrevemos recifense, e nisso não houve qualquer despropósito para um escritor tido tantas vezes como carioca. Pois falam sempre de Nelson como um escritor do Rio pelos temas e formação, quando nada falam por haver chegado aos 4 anos de idade à cidade do Rio de Janeiro’, relata o Dicionário Amoroso do Recife.
Urariano Mota atribui – e fundamenta sua opinião – ‘os delírios patológicos’ dos personagens do grande dramaturgo brasileiro a ‘um certo tenebroso Pernambuco’, ‘à repressão sexual da Casa Grande de Pernambuco’.
Vou parar por aqui, porque, empolgado, posso acabar não deixando nada para o leitor saborear. O Dicionário tem outros verbetes impressionantes, tais como: Claricse Lispector e o frevo; Final de Copa do Mundo; Frevo novo, jovem e arretado; Gente do Recife; Igrejas do Recife; Joaquim Nabuco, um profeta do Brasil; Kahal Zur Israel, a sinagoga das Américas; Mercado de Água Fria; Olinda abre o carnaval do Recife; Reginaldo Rossi, o rei dos sem rei; Teatro de Santa Isabel e muitos outros.
São 338 páginas, em livro editado pelo Casarão do Verbo, com capa de Carlos Alberto Zitelli Júnior, e ilustrações de Leonardo Filho. 

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