Passeava por sobre a própria sombra.
Escoava os olhos como rodo pelas ruas cheias de estrelas da noite. O pálido
clarão dos postes nas calçadas era o suficiente para não lhe deixar sufocar a
sombra, a sua escuridão particular, companheira áspera e segura, a cravar-lhe
na ponta dos pés e na alma o breu eterno de seus medos.
Quem o visse passar, ensimesmado e
curvo, cabelos torcidos a dedos e tornados à chuva, lhe notava o balbucio, o
grunhido de doido indiferente à plateia onomástica.
Mais perto, seria comum lhe sentir ofegante,
encostado em paredes, gemendo cansaços. Sempre desesperançado e sem tempo.
Sempre imerso na distração.
Era assim: durante o dia, evitava as
pequenas multidões, estranhava o amor e as pessoas felizes e nunca se deixava chegar
perto demais. Às noites, se escondia. Suportava o cricrilar da solidão opaca por
detrás daquela sombra a libertar-se ao revés da luz, a tomar-lhe as paredes do
quarto, a lhe falar mais alto pela voz rouca do rádio, por trás da persiana da janela,
pelo vestíbulo do banheiro, por baixo do travesseiro, na página marcada do
livro que não saía da cabeceira. Ele, nunca de dormir, nunca de escrever
sonhos, nunca de respirar. Pior quando tentava pronunciar A PALAVRA... sua voz
lhe embargava, como se ela, aquela sombra, o estrangulasse.
Numa úmida noite, quando a lua abriu o sorriso minguante, corajou-se: trancou porta e janela da sala, apagou as luzes,
tirou o inferno do bolso e, com uma pequena luminária, ameaçou a sombra. Ela zombou
e riu. Foi quando reaproximou a lanterna, mas, desta vez, a chamou pelo nome e
o repetiu! A sombra, então, saltou ligeira para trás, ao teto, pondo-se a
tremer bruxuleante, quando, ferida, berrou, lançando-se sobre ele com a bocarra
aberta e denteaguda para a devora de seu crânio ruim de pensamentos. Foi
quando, num último golpe de ar, ele enfiou o punho no profundo do peito,
arrancando o seu próprio coração e o arremessando para fora, pela janela do
quarto.
A sombra não acreditou no que vira. Enlouquecida,
largou-o e varou veloz pelo vestíbulo violáceo. Tarde: lá embaixo, um felino de
olhos alaranjados e brilhantes o jazia frio, entredentes, desaparecendo na obscura
melancolia do (esque)cimento.
Cambaleante e debruçado ao parapeito da
janela, ouviu distante o soluço bizarro daquela sombra, que desaparecia muda a
serpentear entre os pedroiços molhados, de onde, logo, viria uma peste de
minúsculos insetos verdes, centenas deles, saindo da obscuridão, preenchendo as
paredes, como liquens, em sua direção. Arrogavam-se de tudo no caminho e, ao
final, de seu corpo.
Libertara-se da sombra, sabia. Agora, outro
silêncio queixava-lhe aos ouvidos. Deitado na cama, percebeu-se vazio, distante,
completamente esquecido numa solidão então maior do que tudo no mundo,
condenado, sem coração, a não morrer nunca mais!
Maravilha! Perfeito, Raymundo.
ResponderExcluirGrato, amiga.
ExcluirQue coisa linda... vindo de um grande poeta e escritor não poderia ser diferente.
ResponderExcluirA liberdade também é dolorosa e lindamente poética.
Amei, Raymundo Netto!!! Lindo como todos os seus escritos que já li. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Lenice, obrigado, Khalil. Sempre agradecido.
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