Ah como era linda a casa de meus avós! Fica numa rua
onde botavam cadeiras nas calçadas ao entardecer, rua animada, crianças
correndo no intervalo de carros, festas, música, comércios de quintal, uma
vizinha vendendo pastel, biscoitos... Era fácil distinguir aquela casa das
outras, porque na frente dela morava um frondoso pé de jambo que floria de
agosto a fevereiro, cobrindo a calçada de flores roxas, perfumadas e melíferas,
parecia um tapete, dava vontade de deitar e sonhar. O jambeiro frutificava de
janeiro a maio, quando meninos da rua iam catar os jambos, com varas e gritos
de alegria. Talvez tenha sido plantado por meus avós, porque era frondoso como
uma árvore velha. Depois havia um jardim com jasmineiros, miniflamboyants e
outras plantas de adorno, uma varandinha diante de uma porta de madeira maciça,
com gradeados desenhando geometrias ingênuas.
Uma casa comprida, como as velhas casas do Icó, o
pé-direito muito alto, chão de belos ladrilhos hidráulicos, os quartos na
lateral, e salas se seguindo, cozinha, até dar num quintal. No terreno também
bastante comprido se via um majestoso sapotizeiro que ficava carregado da sua
deliciosa fruta, e mais antigamente, pés de ciriguela, ata e outras frutíferas
abençoadas, sempre florindo e dando frutos, e plantas ornamentais,
damas-da-noite perfumadíssimas, samambaias, um tanquezinho para lavar roupas,
um coqueiro, as copas das árvores das casas vizinhas conversando por cima do
muro. A casa era fresca e agradável, risadas soavam, havia passarinhos, soins,
uma leveza e um descompromisso graciosos.
Eu gostava dessa casa, me sentia bem, ali, ela fazia parte da
minha história. Quando ainda morava em Fortaleza, menina bem pequena, sentei no
colo de meu avô para uma foto de família, toda vestidinha de rendas brancas, na
cena do casamento de uma tia. Mais tarde visitei a minha avó, que morava num
quarto construído no quintal, minha avó cega. Ela fumava cigarros cortados com
tesoura e tinha a fama de ser a pessoa mais calma do mundo. Contam uma história
passada naquele quintal: vovó e alguns dos nove filhos jogavam baralho à sombra
do sapotizeiro, quando entrou alguém esbaforido, avisando que um dos filhos
tinha sido preso, por engano, e todos deviam ir à delegacia para soltá-lo, e
minha avó teria dito, "Mas vamos primeiro terminar a partidinha!" Ali
vi meu avô morto, e a alma dele em terno branco, chapéu de palha branco,
sapatos brancos, cabelos alvíssimos, avô alto e bonito, digno, altivo, olhar
doce mas cheio de autoridade.
Tenho dele uma caneca de alumínio onde estão gravadas flores
e o nome dele, "Doutor Nóbrega", que os trabalhadores de alguma
construção lhe deram em homenagem, um troféu às amizades de antigamente, entre
patrões e empregados. Meus tios e tias que morreram ainda vivem em minhas
lembranças e fotos que capturei dos tempos de antanho. Tantas lembranças
boas...
Porém, hoje a casa só me enche de tristeza. A rua sofre
assaltos, as casas se cercaram de muros e grades, foram mil os puxados que
desfiguraram a paisagem urbana, resta apenas heroicamente o costume das
cadeiras nas calçadas e a criançada na rua. Na casa de meus avós, primeiro
cortaram o pé de jambo-vermelho, botando um muro árido e agressivo como quase
todos os muros. Trocaram depois o jardim por uma garagem cimentada, para carros
quatro por quatro e nem sei o quê. Arrancaram a velha e digna porta por onde
entravam as visitas tirando o chapéu, no lugar está um portal envernizado,
ostentando prosperidade. Arrancaram o chão acolhedor e aplicaram um porcelanato
escorregadio que mais lembra uma pista de gelo. Cortaram afinal o sapotizeiro, cimentaram
o quintal, fizeram segundo andar, escadaria... quase nada restou daquela
atmosfera agradável e acolhedora, perfumada e alegre.
As almas dos meus avós devem estar também tristes, como as
almas antigas, que não reconhecem mais seus lugares, Onde estou? Onde está a
minha casa? A minha maior tristeza não é saber da devastação das maneiras
antigas da casa, mas saber que por todo lado se faz isso. Não é só o prefeito,
o secretário, o engenheiro de trânsito, são todos, ou quase todos os moradores.
Me entristece é que a casa é um pequeno retrato de uma situação ampla, em que
cada um de nós trai o tempo, trai os avós, trai uma honestidade e uma dignidade
em nome de uma prosperidade irresponsável, trai o bom-gosto, trai as árvores, a
arquitetura, a natureza, jambeiros, sapotizeiros, acácias-imperiais,
flamboyants, trai o futuro, os netos, trai o próprio coração.
(Responda se puder: por que tantos ciclistas, mesmo
tendo ciclovia, arriscam a vida pedalando no acostamento ou mesmo na pista?)
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