segunda-feira, 25 de setembro de 2023

"Portas Fechadas", de Raymundo Netto para O POVO


Para o amigo Manuel Bulcão

 

Todo mundo sempre me dizia: quem tem depressão, não pode deixar as portas fechadas!

Não entendia o porquê das portas, mas sabia, sim, o que era depressão. Uma tristeza sem fim, sem razão, e, ao mesmo tempo, com todas elas. Uma sensação de vazio imenso, a angústia, o coração apertado, uma vontade sofrida de chorar... Aliás, certa, certa, só mesmo essa vontade, quase vergonhosa, de chorar.

Geralmente, minha casa estava escura. Trancava as portas e as janelas, não queria ver ninguém. Era doído mostrar um sorriso de aparência, fingir atenção ao ouvir as medíocres histórias do dia a dia de todo o mundo, assisti-los a rir de piadas velhas ou a me contar de suas esperanças e crenças e, o pior: vê-los a zombar das próprias desgraças!

Televisão ou rádio, eu nem ligava. Ouvia música, sim, mas sempre, sempre, as percebia tão tristes quanto eu. No mais, sempre me diziam: Olhe, quem tem depressão nunca pode deixar as portas fechadas, hein?!

Pus a fazer assim: não as fechavas mais, contudo, também não aparecia mais à porta, para que não me vissem, não me incomodassem... esquecessem de mim! Então, quando os mendigos ou carteiros batiam palmas no portão, eu ficava imóvel, silenciado, olhando pela fresta da basculante até eles se irem de vez.

Eu escrevia. E escrevia sempre, seja o que fosse, escrevia. A cabeça sempre ocupada, cheia de pensamentos a se acotovelarem, não me deixando dormir. Assim, varava as madrugadas e escrevia. Os meus dedos cumpriam por mim aquelas prometidas caminhadas pela praça ou à beira-mar recomendadas pelos amigos como terapia. Eles já achavam: precisava de terapia.

Em minha mente se passavam todos os tipos de acontecimentos, porém, na minha vida mesmo, sentia que nada acontecia; nada me suportava a vida!

Sentado diante do computador, lembrava momentos passados, rostos quase esquecidos, antigas promessas, dentre elas a maior, a da felicidade, feita ainda à juventude, que se foi sem que me desse conta. Não acreditava um dia envelhecer. As pessoas diziam: “mas você não tem nem quarenta anos!” Eu nem que acreditava...

Olhava a caixa de mensagens de cinco em cinco minutos: nada! Ficava pensando que logo, logo, alguém escreveria falando de seus planos e eu, com ele, sonharia, desfiando o sonho alheio, ponto a ponto, até cansá-lo e tirar-lhe o gosto. Eu mesmo, fazia tempo, não colecionava sonhos, não esperava por nada nem por ninguém. Eu não acreditava mais.

Nisso, de repente, um vento entrou e fechou-me a porta da sala. A casa escura! Lembrei: quem tem depressão não pode deixar as portas fechadas!

Senti medo. O que aconteceria, então? Vozes frequentes ao pé do ouvido mudaram o discurso: ele morreu? ele morreu? ele morreeeu... Uma sombra pesada em tom de cinza pairou sobre minha cabeça. O frio desceu-me a nuca e fiquei em silêncio, atônito, a esperar, mas nada aconteceu. Na sala, tudo parecia olhar para mim: os livros, os quadros, as prateleiras, as canecas... até o gato que numa apatia incômoda não ria nunca, também me fitava... eles sabiam... mas nada aconteceu!

Fui ao banheiro, olhei para o espelho, e não era eu quem estava lá. A garganta apertava-me, e eu chorei, chorei, chorei, abri as torneiras... mas nada aconteceu. Nada acontece nunca e nunca mais abri as portas nem os olhos, trancado para sempre na minha mais absoluta solidão.

 




 

"O 'Livro das Ausências', de Hermínia Lima", por Raymundo Netto

 


Hoje é um dia especial, pois aqui nos reunimos, não apenas para celebrar mais um feito, um legado cultural de Hermínia Lima, que admiramos, enquanto mulher, mãe, amiga, militante, profissional e poeta, mas também porque neste ambiente ora respiramos, falamos, lemos e nos alimentamos de poesia.

Contudo, trago aqui uma constatação nada original, mas sempre necessária: a poesia é de uma inutilidade singular. No mínimo, uma utilidade inútil, como defendida por filósofos, estudiosos e até, com um certo embrulho no estômago, pelos próprios ou pelas próprias poetas ou poetisas.

Entre esses poetas, o marginal Alcides Buss, autor da obra Círculo Quadrado, que afirma que a autenticidade da poesia reside exatamente na sua inutilidade. E entende os poetas como “seres bastante incomuns que escrevem com o corpo todo”, o que os diferem dos demais escrevedores que usam só as mãos, os mais simples, ou aqueles que usam as mãos conjugadas à memória, à imaginação, ao pensamento. Mas nada, assegura ele, se compara ao poeta que escreve com o corpo todo.

E quando fala do corpo todo, admite que o seu corpo e o corpo do mundo também se entrelaçam, se fundem ou se completam sinergicamente, de maneira que o sol, a lua, as estrelas, o crepúsculo, as marés, os mares e os seus mistérios, as árvores, as flores que desabotoam nos jardins, os seus perfumes, os animais, as crianças, os homens, as mulheres, os seus amores ou dores, tudo, tudo é acolhido nesse corpo todo.

Sabemos que a poesia percorre um caminho indefinível que vai da pacífica oração ao exorcismo, da quase inocente magia à bruxaria, da sensação leve da harmonia à angústia do caos. Mas nunca, nunca é passiva.

Diante desse cenário, nos perguntamos para que serve à poesia... Ou talvez, a quem ela serve? Ao sistema consumista? À estrutura do poder, da política? À necessidade premente e imediata de lucro todo o tempo, toda a hora, a qualquer custo, como as demais engrenagens de nossa vida a nos escravizar, aprisionar, a nos adoecer, a nos arrebatar covardemente a vontade de viver? O que assistimos hoje é o amargor vencendo a doçura, a ternura que, juramos, não poderia ser perdida.

Não, a poesia é inegociável e, ao contrário das coisas mundanas, ela é livre, pois ninguém a possui e ao mesmo tempo ela, se a porta estiver aberta, nos encontra quando menos esperamos. Quando abrimos os olhos pela manhã ou ao chegar à janela e nos depararmos com a beleza ainda virgem do céu, de um sol despertando molinho, molinho... Quando diante do olhar cheio de vida de uma criança faladeira; quando nos é roubado aquele beijo, mesmo que ainda mudo, num instante em que parecia que nada, nada mais poderia nos acontecer; ou quando a xícara de café quente nos toca os lábios e divisamos coisas que não estão mais aqui, que se perderam em um dos desvãos de nossos caminhos. Sentimos os cheiros, os sabores, ouvimos as suas vozes e nos dá saudade... E saudade, como registra Neruda, é quando o amor ainda não foi embora, mas o amado já.

Hoje, quando a luz acordou o dia

Cada raio acordou em mim uma saudade.

Uma saudade agigantada,

Dilatada pelo pulsar de desbotadas lembranças.

Lembranças dos dias que não vivemos,

Dos encontros que não tivemos,

Do grito abafado pelo desejo contido.

Lembranças da chuva que ainda nuvem...

E v a p o r o u . . .

Até então falamos da poesia, agora falemos dos poemas.

Algumas pessoas, nós os chamamos de poetas e/ou poetisas, se aventuram e ousam com coragem, talento e renúncia a colher desse mundo imaterial os insumos e, tal qual Prometeu o fez, quando roubou o fogo dos deuses para entregar aos homens, modelam e transformam essa luminância poética em forma de poemas, disponibilizando-os para a humanidade.

É o que a Hermínia faz hoje ao nos oferecer o seu Livro das Ausências, uma coletânea de poemas captados desse universo muito íntimo da poeta, desse corpo em interação com o mundo, mesmo que apenas o seu, que ela classifica de ausências que cantam, que gritam, que pulsam, que saltam e que sangram.

E, em meio a eles, seus poemas, independentemente da classificação da autora, nos trazem outras ausências, entre elas as que nos calam, que nos confrontam, que nos devoram até o ponto de ser tão presentes na nossa vida.

O titã Prometeu foi punido por Zeus, que temia que, com o fogo, os homens pudessem se tornar tão poderosos quanto os deuses. A punição era dolorosa: Prometeu, eternamente amarrado a uma rocha, assistiria a uma águia a devorar seu fígado. O órgão se regeneraria diariamente, e, para todo o sempre, a tal águia o comeria.

A nossa poeta, que ora celebramos, nos fala em algum instante de verso: “o respirar enfermo, o peso insuportável de todas as dores do mundo”. E daí trazemos Vinicius: “assim como o poeta só é grande se sofrer” ou “que todo grande amor só é bem grande se for triste”.

Mas então ouvimos um conselho de Hermínia:

Há momentos em que o grito aprisionado

Se agiganta.

Nessas horas, o melhor,

É escancarar a porteira do peito

E permitir vazão

Ao que vem da garganta.

 

A ausência de alguém, de um tempo, de um lugar é um estado de alma. Algo que pode nos faltar materialmente, mesmo que sintamos ou saibamos nunca distantes, quando desse alguém, desse tempo ou lugar nós precisamos, bastando apenas nos conectarmos com a nossa, vamos chamar assim, consciência.

Há, no entanto certas ausências que parecem um sequestro de si, que por vezes nos doem tanto, principalmente enquanto estamos distraídos, e a gente acha até que não pode suportar:

As fotos no velho álbum

Trazem de volta uma saudade

Que rasga o tecido da tarde.

As fotos sorriem para mim

E me fazem chorar.

 

Marilena Chaui nos faz refletir que “falamos porque cremos nas palavras e nelas cremos porque cremos em nossos olhos: cremos que as coisas e os outros existem porque os vemos e que os vemos porque existem. Somos, pois, espontaneamente realistas.”

E é esse mundo realista e transbordante de poesia que encontramos na tessitura da obra de Hermínia, cuja seiva principal a percorrer suas páginas são memórias, sensações, lembramentos, desejos, delírios, despedidas e distâncias.

Tuas cordas nas minhas cordas,

Minha pele nas tuas mãos.

Tu, um vento; eu, uma canção.

Passaste, passei, passamos,

Em vão?

Hoje, somos sombra, ausência,

Saudade e silêncio,

Ou nuvem a dissolver-se

Na noite, na escuridão.

 

Hermínia escreve com todo o corpo. Cada ausência por ela segmentada nos traz a sua presença, uma faceta distinta e verdadeira, e é na verdade dessas saudades poetizadas é que as suas palavras nos tocam. O corpo da poeta em consonância com o corpo do mundo, de todo mundo. Memórias que também são nossas e nos são tão caras, pois são o nosso repertório de vida.

A casa adormeceu silenciosa.

Só as redes cantavam

Sua canção de punhos em movimento,

Acalantando o sono e os sonhos,

Nos braços alaranjados

Das maternas e ternas varandas,

Volutas ao vento vivo e violento

De um outubro saudoso e sonolento.

 

E mais adiante os seus fantasmas, quando seus medos gritavam saindo de sua boca; a chuva a cantar do lado de fora pela janela; o recanto seguro entre as pernas da mãe a pedalar na velha máquina de costura;  as cadeiras na calçada; o cavalo Ventania; o pião de madeira carrepeteando pelo chão e outras brincadeiras de menina-menino; os temperos-cheiros da avó, como beiju de 3 dias guardado para festejo no café da tarde; o seu avô Luís com seus bolsos repletos de bombons; as saudades da terra que a acolheu, São Luís do Maranhão, com suas histórias, seu bumba-meu-boi, da “batucada dos pandeirões, em couros febris tocando toadas na beirada das fogueiras”; o Bento, em tudo ali, o inesquecível Bento.

Além disso, para não trair sua trajetória, encontramos poemas com teor sensualíssimo, arrebatador, eu diria até terrivelmente apaixonados, de marcar com ferro e deixar em carne-viva de brasas:

Se eu pudesse,

Eu pousaria acesa,

Sobre ti,

Como um sol nascente,

De pele incandescente,

E beijaria, calma e solenemente,

Os teus desejos mais insanos.

Se eu pudesse,

Eu rasgaria a pele dos teus pudores,

Eu seria a soma de todos os teus amores,

Só para desaguar em ti,

Minha lava de anseios,

Sobre as tuas costas.

Se eu pudesse,

Eu te sufocaria com beijos,

E queimaria, com o meu vulcão,

Teus rebanhos apascentados,

Sobre tua tranquilidade de pastos.

 

Hermínia, minha amiga, agradeço demais, em nome de todas e todos nesta plateia, esse livro-presente, que honra e dignifica a poesia, a nossa literatura cearense e brasileira.

Hoje num panorama em que há tantos poetas e tão pouca poesia, chega a nós uma obra como essa em que ela está marcadamente presente, com a sua força e pulsar, assim como nós vemos você, e concordamos:

Quando uma leitura nos encanta,

O livro que nos fala nela,

Enquanto conta,

Também canta e acalanta

Nossos desencantos.

O livro acalma saudades

E peles inquietas.

Preenche lacunas abertas

E irriga o vale da vida

Saciando, com saberes,

Nossas sedes e ausências.

 

Meus mais sinceros parabéns.

 

Raymundo Netto, 23 de setembro de 2023