segunda-feira, 31 de julho de 2023

"Preserve-se Raymundo Netto", de Armando Lucas para o AlmanaCULTURA


O que entra por um ouvido e sai pelo outro chama-se olvido. Dessa passagem costuma não restar qualquer marca, nem mesmo a título de cera residual. É que o esquecimento raspa tudo. Raymundo, como lembram os versos de Drummond, rima com mundo. Parece pouco!? Não o é. Os próprios versos de Carlos, aqui ainda o Drummond, em que se ouve dizer o que parece gracejo (gracejo no sentido de, diante de tão vasto mundo o que pode um homem comum senão tirar um sarro da relação entre a existência e os recursos formais possíveis da representação do real poetizável?), o guardam do alcance do olvido (este buraco negro da memória). Não é pouco rimar Raymundo com mundo, não é pequena a rima de mundo com Raymundo, porque nosso Raymundo dá as mãos ao mundo. Por isso, vale a pena. Sim, vale a pena preservar Raymundo Netto! Que não lhe cubra corpo e alma o manto do olvido! O que se deu com muitos; como se dará com outros tantos.

A sorte dos Carlos, a sorte do mundo, é haver um Raymundo com um pé na poesia e outro no mundo. O mundo de Raymundo Netto é vastíssimo, mas é sobretudo vastissimamente alencarino. Tirar esse mundo, em especial, o seu domínio cultural escrito, de debaixo do manto do esquecimento é uma das faces do trabalho desse Netto do pai de Deca Costa. Eu disse faces. Sim, são muitas. Não cabe aqui listá-las; haveria imprecisões.

Não sou pesquisador como ele o é. Não tenho, como ele a tem, dos Titãs a sanha para passar além da serra da Aratanha. Sou seu leitor; sou admirador de seu trabalho raymundo neste mundo alencarino. E, antes que eu apresente uma materialidade dessa admiração, digo que assim como há o manto do esquecimento, há o da lembrança.

Quando as crônicas quinzenais de segunda no jornal O POVO (absurdas, ordinárias ou memorialistas); quando os editais de incentivo à cultura; quando os cursos à distância pela Fundação Demócrito Rocha; quando a edição de livros sob sua curadoria pelas Edições Demócrito Rocha; quando esse tanto de fazeres diversos não possa mais estampar seu sorriso sempre acolhedor, que possa um novo manto sudário estampar sua face síntese: Raymundo Netto de mãos dadas com o mundo, o mundo alencarino!

Quanto à materialidade da minha admiração, ei-la: em 2019, por volta do mês de setembro, do forro da biblioteca escolar, pendurou-se um nome. Abaixo dele há uma estante: é uma gibiteca. Quando um aluno, em vez de tomar nas mãos um exemplar de HQ, dirige os olhos para o alto, invariavelmente duas são as perguntas que faz: o que é?; quem é? À primeira eu respondo sem delongas: “Um nome: Raymundo Netto”.

À segunda a resposta vem com um convite: "Senta que lá história!" Convoco os Acangapebas; leio uma crônica absurda de segunda; pondero que o amor pode sair barato quando é de graça; puxo um exemplar da coletânea Enem. Então, chamo sua atenção para o nome que aparece em todo esse material e pergunto: "Merece ou não merece estar lá no alto?"

O reconhecimento do merecimento se dá pela exclamação de assombro expressa pelos olhos arregalados e a confirmação desse assentimento, pelo movimento, com o queixo caído, da cabeça para cima e para baixo. É tudo? Não. Eventualmente, algum aluno pede pela explicitação da relação entre o nome e a gibiteca. Então, estendo as mãos e lhe ponho diante dos olhos, ainda arregalados, um fascículo do Curso Básico de Histórias em Quadrinhos, outro do Curso Quadrinhos em Sala de Aula: estratégias, instrumentos e aplicações, o livro História das Histórias em Quadrinhos no Ceará, a revista Antologia HQ. “Vês?” Raymundo Netto: ora organizador, ora coordenador geral e editorialista.
Raymundo rimar com mundo é muito na poesia do Carlos Drummond de Andrade. Pouco são um novo santo sudário e uma singela biblioteca de escola pública. Pois se uma biblioteca municipal inteira não está capaz de impedir que a memória criativa do Carlos Cavalcanti se perca em uma rua qualquer do esquecimento, o que dizer de duas ações pequenas que apenas fazem a vida, enquanto viva, valer a pena?

Os dois Carlos estão mortos. O Drummond é lembrado sempre que Raymundo rima com mundo. O Cavalcanti, olvidado, só é lembrado quando Raymundo, para além de rimar, é, por seu esforço, solução quase milagrosa (lembremos: de água fez-se vinho) para a transformação de seu esquecimento em sua lembrança.

Raymundo Netto está vivo! Vivíssimo! É vasto! Vastíssimo! É alencarino! Alencariníssimo! Por isso, pena em sua lida em prol da memória alencarina. Por isso, por sua pena nos convoca a pelejar em prol do alimento nativo que alimenta nossa memória alencarina. Sem Raymundo não saberíamos o valor do que poderíamos perder ao esquecimento. Com Raymundo sabemos que podemos pelo menos esgarçar o manto do esquecimento daquilo que deve permanecer vivo na lembrança. Viva Raymundo Netto! Preserve-se ( , )Raymundo Netto!




 

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