Durante os próximos dias, a cena se repetiria. Geralmente à tarde, após o almoço, nas saídas do trabalho para resolver questões pessoais: Vitória batia à porta e mal Jandira a abria, adentrava. Esta, mesmo incomodada com a frequente e absurda visita, nada dizia, apenas meneava a cabeça ao vê-la sem cerimônia trancar-se no quarto do irmão.
Deitando a bolsa
na cadeira, Vitória iniciava ali mais uma exploração de reconhecimento. Folheava
e lia os livros da estante, recados em post-its, diários avulsos nas gavetas e
os poucos álbuns de fotografias. O que buscava, não sabia ao certo, mas há dias
uma excitação não a permitia trabalhar nem dormir. Por vezes, à noite, o
marido, ao chegar ao seu quarto, a encontrava chorosa, distante. Discreto, pegava
o travesseiro e um lençol: “Vou dormir na sala, amor. Está quente aqui.” Jamais
passaria por sua cabeça que a esposa sofria de uma angústia obstinada de recordar
e encontrar-se com outro homem.
Vitória ousou
ligar a vitrola e deixou tocar o compacto pousado no prato: “You know that it
would be untrue/You know that I would be a liar…” Entrou no banheiro, evitando olhar-se
no espelho. Abriu o armário: ansiolíticos, antidepressivos, analgésicos. Sobre
a pia, uma escova de cabelo. Pegou-a lentamente. Havia alguns fios nela: “Ramon!”
A menção, a meia-voz, daquele nome ali ecoou, deixando-a trêmula, arrepiada, largando
involuntariamente a escova. Passado o súbito mal-estar, pegou-a do chão e dela
colheu aqueles fios de cabelo: “Grisalhos... estavam grisalhos.” Sentou-se no
vaso e passou a observar, entre as polpas dos dedos, aquele achado. Apropriava-se
da sua textura e tentava, fechando os olhos, cheirando-os e passando-os
delicadamente pelo rosto, sentir a sua presença. Lembrava: escorria os seus dedos
pelos cabelos do namorado, em carícias lentas, enquanto ele, alegre, contava
histórias. Encantada, ela estenderia seus lábios àquele sorriso: “Era tão lindo.”
Levantou-se. Correu para a sua bolsa, de onde tirou o estojinho do espelho e lá
os guardou com o cuidado e a hesitação de quem rouba.
No guarda-roupa, em cuja porta se liam os versos “Todo grande amor só é bem grande se for triste”, encontrou, envolvidos em saco de papel, as cartas e fotos, entre outras coisas que havia devolvido a ele há mais de vinte e cinco anos, assim como as suas também. Com a poeira, vinha uma série de sentimentos de uma outra Vitória já esquecida, exceto por ele: medo, tristeza, incerteza e remorso.
Anoitecia. No entanto, decidiu ler aquelas cartas. Surpreendeu-a tamanha ingenuidade e inocência. Ali estava uma garota inexperiente, sonhadora – era canceriana –, sentindo-se a mulher mais amada do mundo, apaixonada por um rapaz tão tolo, outra criança, talvez mais do que ela. Dois espíritos que se perderam ao viver um amor que, hoje, ela cria não existir. Mas se esse amor era uma mentira, o que é que estava presenciando ali? O que era tudo aquilo? “Vitória, eu a amo tanto, mais do que tudo, mas do que a mim mesmo.” Passava de uma carta para a outra com o coração apertado de doer. Era uma tragédia. Um amor mórbido a arrancar a vontade de viver de Ramon, compensando a ausência dela com a mais pura saudade.
Olhou para a cama dele, no
centro do quarto, descalçou os sapatos e entregou-se a ela – evitava-a –, aos
soluços, agarrando o travesseiro contra as pálpebras umedecidas, e, em instante
irrefletido, numa franqueza quase infantil, pedia-lhe perdão.
O quarto escuro recendia ruína. Sobre o corpo de bruços, então indefeso e adormecido, via-se pairar por inteiro uma inusitada sombra, como se a resguardá-lo gentilmente das dores irreparáveis de um passado morto, porém reaceso de paixão.
(CONTINUA DAQUI A 15 DIAS)