domingo, 15 de janeiro de 2023

"Amante (Parte IV)", de Raymundo Netto para O POVO


Durante os próximos dias, a cena se repetiria. Geralmente à tarde, após o almoço, nas saídas do trabalho para resolver questões pessoais: Vitória batia à porta e mal Jandira a abria, adentrava. Esta, mesmo incomodada com a frequente e absurda visita, nada dizia, apenas meneava a cabeça ao vê-la sem cerimônia trancar-se no quarto do irmão. 

  Deitando a bolsa na cadeira, Vitória iniciava ali mais uma exploração de reconhecimento. Folheava e lia os livros da estante, recados em post-its, diários avulsos nas gavetas e os poucos álbuns de fotografias. O que buscava, não sabia ao certo, mas há dias uma excitação não a permitia trabalhar nem dormir. Por vezes, à noite, o marido, ao chegar ao seu quarto, a encontrava chorosa, distante. Discreto, pegava o travesseiro e um lençol: “Vou dormir na sala, amor. Está quente aqui.” Jamais passaria por sua cabeça que a esposa sofria de uma angústia obstinada de recordar e encontrar-se com outro homem.

Vitória ousou ligar a vitrola e deixou tocar o compacto pousado no prato: “You know that it would be untrue/You know that I would be a liar…” Entrou no banheiro, evitando olhar-se no espelho. Abriu o armário: ansiolíticos, antidepressivos, analgésicos. Sobre a pia, uma escova de cabelo. Pegou-a lentamente. Havia alguns fios nela: “Ramon!” A menção, a meia-voz, daquele nome ali ecoou, deixando-a trêmula, arrepiada, largando involuntariamente a escova. Passado o súbito mal-estar, pegou-a do chão e dela colheu aqueles fios de cabelo: “Grisalhos... estavam grisalhos.” Sentou-se no vaso e passou a observar, entre as polpas dos dedos, aquele achado. Apropriava-se da sua textura e tentava, fechando os olhos, cheirando-os e passando-os delicadamente pelo rosto, sentir a sua presença. Lembrava: escorria os seus dedos pelos cabelos do namorado, em carícias lentas, enquanto ele, alegre, contava histórias. Encantada, ela estenderia seus lábios àquele sorriso: “Era tão lindo.” Levantou-se. Correu para a sua bolsa, de onde tirou o estojinho do espelho e lá os guardou com o cuidado e a hesitação de quem rouba.

No guarda-roupa, em cuja porta se liam os versos “Todo grande amor só é bem grande se for triste”, encontrou, envolvidos em saco de papel, as cartas e fotos, entre outras coisas que havia devolvido a ele há mais de vinte e cinco anos, assim como as suas também. Com a poeira, vinha uma série de sentimentos de uma outra Vitória já esquecida, exceto por ele: medo, tristeza, incerteza e remorso. 

Anoitecia. No entanto, decidiu ler aquelas cartas. Surpreendeu-a tamanha ingenuidade e inocência. Ali estava uma garota inexperiente, sonhadora – era canceriana –, sentindo-se a mulher mais amada do mundo, apaixonada por um rapaz tão tolo, outra criança, talvez mais do que ela. Dois espíritos que se perderam ao viver um amor que, hoje, ela cria não existir. Mas se esse amor era uma mentira, o que é que estava presenciando ali? O que era tudo aquilo? “Vitória, eu a amo tanto, mais do que tudo, mas do que a mim mesmo.” Passava de uma carta para a outra com o coração apertado de doer. Era uma tragédia. Um amor mórbido a arrancar a vontade de viver de Ramon, compensando a ausência dela com a mais pura saudade. 

Olhou para a cama dele, no centro do quarto, descalçou os sapatos e entregou-se a ela – evitava-a –, aos soluços, agarrando o travesseiro contra as pálpebras umedecidas, e, em instante irrefletido, numa franqueza quase infantil, pedia-lhe perdão.

O quarto escuro recendia ruína. Sobre o corpo de bruços, então indefeso e adormecido, via-se pairar por inteiro uma inusitada sombra, como se a resguardá-lo gentilmente das dores irreparáveis de um passado morto, porém reaceso de paixão. 


(CONTINUA DAQUI A 15 DIAS)


 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

"Amante (PARTE III)", de Raymundo Netto para O POVO


Vitória batia à porta de Jandira logo na manhã seguinte à súbita conversa telefônica na qual revelava: “o coração de Ramon parou pela segunda e última vez”. Conforme a lacônica irmã, a primeira fora quando se sentira rejeitado pela mulher amada: “Depois daquele dia, nunca mais foi o mesmo. Acabou-se, fechou-se para o mundo e para a vida.”

Surpresa, Jandira abriu a porta para Vitória. No entanto, entre a hesitação de convidá-la ou não, a assistiu entrar ligeira na sala, pelo visto trazendo o mesmo peso de silêncio na alma. Não a ofereceu nada, nenhuma gentileza ou cordialidade. Vitória parecia abalada, como se procurasse algo que perdera e que, apesar do tempo, nunca dera conta. Sentou-se no sofá e pediu desculpas por não a ter reconhecido por nome durante a ligação. Claro, era a irmã de Ramon. Não a conhecera pessoalmente, mas o namorado falava muito dela, pois sendo eles órfãos, Jandira era o que ele tinha, não apenas como família, mas como mãe. Jandira sentou-se na cadeira de balanço ao lado de um antigo aparelho de TV. Sentia alfinetar os olhos, disfarçou o tremor do queixo, mas não chorou: “É verdade, eu era ‘irmãe’ dele... do Ramon. Pobre menino, se deixou levar.”

Vitória, com um incômodo sorriso de canto de boca e o olhar perdido no além, ajeitou os óculos e pôs-se, carinhosamente, a falar dele, do adolescente que ele foi, coisas das quais conhecera bastante e compartilhara com ele mais do que com qualquer outra pessoa. E, naquele instante, estranhava ela própria ainda lembrar de tudo aquilo com tantos detalhes. Entre essas lembranças, não diria nunca, mas estava aquela casa. Só fora ali uma única vez, a namorar, justamente aproveitando a ausência de Jandira.

A irmã ouvia em um misto de indignação e de saudade. Uma vontade de mandá-la à rua. Ao mesmo tempo, de trancá-la e guardar para sempre aquelas memórias tão queridas. Suspirou e, de repente, ergueu-se: “Quer conhecer o quarto dele? Está como ele deixou. Não tive coragem de...” Engoliu a voz, espremendo toda sua dor no rosto vermelhecido.

Vitória levantou-se assombrada. De certa forma, achava quase um sacrilégio entrar no quarto do ex-namorado, mas a curiosidade aliada àquela tensão a conduziu.

Seu coração batia forte ao entrar no quarto úmido, escuro e abafado. Impossível não ser contaminada pela melancolia ali apresada. Jandira abriu a janela e saiu.

Vitória, sem ter a certeza de que deveria ou queria estar ali, passou um tempo em pé, quase imóvel, segurando com as duas mãos a alça da bolsa encostada nos joelhos. Após uma breve panorâmica, caminhou lentamente pelo quarto de piso em tacos, a começar pela mesa de trabalho onde encontrou em um velho porta-retrato – um presente dela – uma foto do casal. Ela sorriu. Pareciam tão felizes, tão lindos. Largou a bolsa no chão e, involuntariamente, trouxe com as duas mãos o retrato ao peito, enquanto na sua memória despontavam vozes, promessas e risos, muitos risos. Sim, estavam felizes. Se amavam. E pela primeira vez em tantos anos verteu uma lágrima, talvez não por ele, mas por ela, por aquela felicidade pintada no retrato, apenas nele, não a reconhecendo mais. Mantendo-o ao peito com uma das mãos, passou a vasculhar em torno com a outra. Livros, revistas, canetas, uma antiga máquina de escrever, o notebook e, preso a um clipe, uma outra foto. Desta vez, não é ela, mas outra: “É Virgínia.”

“Virgínia e Vitória”, desde a escola apelidadas de “as gêmeas” devido à semelhança física e a amizade “grudenta” entre elas. Não havia segredos. Viajavam juntas. Dormiam uma na casa da outra e, durante um tempo, até usavam roupas iguais. As melhores amigas, até o surgimento de Ramon, já no ensino médio. O namoro deles, naturalmente, as afastou. Pensava nisso ao olhar aquela desconhecida foto, quando Jandira entrou no quarto: “Você se lembra dessa moça?” “Sim, claro, é... era minha amiga”. Jandira deitou, lenta e pensativa, uma bandeja com uma xícara de café sobre a mesa e, com um tom enrouquecido, revelou: “Ela namorou ele quando você... você sabe.”

 

(CONTINUA DAQUI A 15 DIAS NESTE MESMO CANAL)