Ora, (Direis) Ouvir Silêncios!
Veni Creator Spiritus.
Essa invocação ao Espírito criador, que
abre os Salmos para Orquestrar Silêncios
de Bruno Paulino, é um hino ainda hoje utilizado em celebrações litúrgicas das
mais diversas ocasiões, inclusive na solene coroação de reis. Os salmos
bíblicos, cânticos ou poemas de louvor, em sua maioria, são atribuídos ao rei
Davi (o “amado”, um dos primeiros voyeurs
do Antigo Testamento), e têm diversas finalidades, como afastar as tristezas,
ajudar a dormir, melhorar a relação com a pessoa amada, proteger de maus
espíritos, curar doenças etc.
Creio que a
poética de Paulino, por uma questão essencial indescritível e experiencial do
próprio autor, o conduz pelo caminho do sagrado, que, convenhamos, nem sempre é
um trilhar seguro: “meu viver é trágico/igual história grega”. Referimo-nos à
experiência de um poder, uma força sobrenatural que habita algum ser, seja, no
caso, o poeta ou a sua obra. Lembremos Florbela: “Ser poeta é ser mais alto, é ser maior/ Do que os
homens! Morder como quem beija!/ É ser mendigo e dar como quem seja/ Rei do
Reino de Aquém e de Além Dor!/ É ter de mil desejos o esplendor/ E não saber
sequer que se deseja!/ É ter cá dentro um astro que flameja,/ É ter garras e
asas de condor!”
Esse poder de encantar o mundo,
característico da experiência do sagrado, é aqui operado pelas águas purificadoras
da poesia que “hoje transformam palavras num misto entre o óbvio e o nunca
visto”, no dizer de Leminski, convidado pelo autor para estender o seu cajado e
abrir as páginas de nossa travessia nessas águas polifônicas – do rio
Quixeramobim? – de um mundo apenas à poesia permitido, onde “desanoitece para
anoitecer”.
Essa poesia aqui se apresenta concisa,
coloquial, telúrica, livre de metrificações, de rimas e/ou de modelos rígidos,
a respirar, como encontramos em um
salmo que diz não temer “o pavor da noite nem a flecha que voa de dia, nem a
peste que se move sorrateira nas trevas, nem a praga que devasta ao meio-dia.”
A poesia,
quem lê compreende, tem um poder mágico, intocado e intraduzível, o que nos faz
crer na sua origem divinal. Repito: origem! Pois, para mim, uma ovelha perdida,
a poesia é divina e por esse motivo não é possível ao ser humano alcançá-la em
sua plenitude, muito menos encarcerá-la em papel. Daí nos depararmos com ela
nos olhares, nos sorrisos de crianças, no lábio sedento de um beijo, no
horizonte encarnado ao final da tarde, no farfalhar das folhas, na areia sertaneja
que prateia à noite de luar. Porém, o poema, esse não, é uma espécie de “anjo
caído”, desterrado neste mundo, seduzindo homens e/ou mulheres a seu serviço,
se reproduzindo e explodindo em prismas líquidos tintos de cores do céu. E é
ali, no topo do poema, apenas reflexo poético de Deus, na palavra buscada – e raramente
precisa –, o sacrifício do poeta (ou profeta?). Sim, a poesia é divina, mas o poema
é profano, mesmo quando caiado “na beleza imorredoura de um sonho”.
Folheando o
livro novo, como acarinhando um recém-nascido, percebemos que não apenas explicitamente
no título, mas no projeto gráfico e na identidade desses livros de poesia – a
autor comete obras em outros gêneros –, tanto no Ofertório dos pássaros (2019), assim como em Breviário (2020) e neste Salmos...
(2021), todos pelas Edições Lua Azul, traz em suas páginas uma breve excursão
ao mundo cristão, ornado em ilustrações, imagens e tipografias antigas, no seu
léxico, entre outras expressões latinas. Não é coincidência, e, sim, um projeto literário. Esses títulos
compõem a Trilogia de Celebração do
Divino Mistério, conforme ele denomina, o que para ele é a sua “busca pelo
absoluto no cotidiano”.
O livro é
composto de duas partes: “Epístolas da Solidão” e “Sacrário da Memória”. Nas
páginas que anunciam essa partilha, encontramos a imagem de um homem, talvez um
velho (um eremita em busca do seu eu interior?), sentado à sombra de uma árvore
e diante de um horizonte amplo, “expectando”, ou seja, em permanente, humilde e
paciente expectativa e espera. À espera de quê? Do alto, duas aves se
aproximam, e nos parecem trazer o esperado alimento. Simbolicamente, alimento
para o espírito: “Vinde,
Espírito criador,/ visitai as Vossas almas,/ enchei com a graça do alto/ os
corações que criastes. [...] Iluminai os sentidos,/ infundi o amor nos
corações,/fortalecei os nossos corpos/ fortalecei-os [de virtude] para sempre.”
A revelação
se inaugura com “estudo”, no qual afirma ser a solidão “um bicho sem
metáforas”, entretanto, concluindo: “da solidão/ não sei dizer/ sem metáforas”.
A solidão,
para os iluminados, é uma companheira cobiçada e talvez a mais fiel. É por meio
dela a reconciliação com a sua essência, com a sua motivação de existir. É
nela, que através dos seus ritos – inclusive os literários e artísticos de
forma geral –, se manifesta a sua verdade, um manto de mistério, e se distorce todos
os conceitos mundanos, inclusive o da duração das coisas: “faz tempo/ era menino/ e a vida/
sonhava/ sem tempo/ lá no terreiro” ou “pra onde vamos/é sempre ontem”.
Mas se
engana quem pensa que o autor escreve com o espírito em cela, numa aura de
santidade e transcendência, refreando sua condição de inquilino terrestre. Esse
mesmo Paulino, devoto de Nossa Senhora dos Poetas – me perdoe, são Francisco de
Assis –, que nunca aprendeu a usar gravata, gosta de cerveja e de ouvir música
antiga, que lê Manuel Bandeira, assiste a filmes em preto e branco, não escreve
sonetos nem sabe dançar, embebido na condição ambígua do “ajoelhou tem que
rezar”, “feito passarim”, dá uma escapadela ao adro e “lá das nuvens/ delira/
e/ desloca/ a gravidade/ da/ terra/ que flutua/ igual teu corpo/ nos meus
braços”.
Da mesma
forma, em “espiritismo” – que curioso... –, encontramos esse ser em conflito,
misturando as dimensões do sagrado e profano, imerso numa estranha geografia
que nós só conhecemos – e experenciamos, em um delírio quase epifânico – de
muito perto: “tua lembrança é como transe/ pássaro que voa sem sentido/ num céu
de estranha geografia// tua lembrança é meu martírio/ uma cruz que sempre
carreguei// meu carma/ desde o dia que te vi/ pra nunca mais morrer”.
Cauteloso –
e romântico, diga-se –, percorre os bulevares de Quixeramobim, a Andaluzia de
seu peito, e assegura: “o amor é medicamento eficaz pra tudo que é dor”.
Contudo, numa antítese própria – do bálsamo à punição – de quem ama, desama e é
novamente arrebatado de si, e clama: “todo amor é martírio”. E assim, como quem
carrega “um punhal sempre à espreita/de um destino obstinado”, afirma,
endoidecido de paixão como uma Salomé: “só acredito/ num amor/ que decepa/
coração/ e/ cabeça”.
Não estendendo-me
mais, pois a obra, por ser calcada em poesia, só se conhece quando a enxerga
pelos olhos da alma – ou se ouve os silêncios por ela orquestrados –, não
poderia deixar de falar desse personagem constante em Paulino, a sua Terra
Prometida, onde trilha seu ministério literário: Quixeramobim! O autor é
profundamente arraigado e encantado pelo seu torrão, a sua aldeia de Tolstói, berço
de Antônio Conselheiro, Antônio Bezerra, Ana Montenegro, Ciro Saraiva, Fausto
Nilo, entre outros, a quem dedica um laboroso trabalho de promoção e de
produção literária, não colocando-a no mapa, como costumam dizer, mas tirando-a
apenas do mapa e dedicando-lhe versos, elevando-a à condição não de cidade, mas
de “mundo”, o seu mundo: “quixeramobim é
o mundo/ na estrada: paisagem, pedra,/ cemitério, silêncio e soluço//
quixeramobim é o mundo/ riachos, meninos descalços/ e o azul faz igreja no
quintal// quixeramobim é o mundo/ de místico passado, passeio/ num caminho/ que
eu lembro passei”.
Contudo, não
se espantem se, de repente, Paulino mandar tudo pelos ares e, numa selvageria
de coração maior do que a de Belchior, berrar em tônica brega-canção: “Esta
cidade é uma selva sem você!”
“Pax et
Bonum!” (“Paz e Bem”) é o que desejo a mais esse, certamente, exitosa obra.
Raymundo Netto
Leitor de Bruno Paulino
Para adquirir o livro, o contato do autor:
bruno_enxadrista@hotmail.com