Jacó era um bruto, mas só dentro de casa. Na rua, era
conhecido pelo seu coração amantíssimo, vivendo na comovente disciplina do
pecado, mais plural do que a letra “S”, talvez a mesma usada pelos sultões
sauditas ao amealhar seu vasto harém.
Disposto e
com tempo de sobra, lançava-se ao vento, principalmente quando este lhe chegava
com fragrâncias femininas. Para elas, tinha um faro extraordinário. Então, o
homem se entregava molinho, molinho, feito almofada de sofá antigo.
Não raro, algumas
se interessavam incondicionalmente por sua perfeita cafajestice. Outras, porém,
ao perceberem a larga aliança dourada na mão esquerda, quase sempre enfiada no
bolso, se frustravam: “Só podia ser... um tipão desses, né?” Mas Jacó não perdia
a pose e contornava a situação com uma rodrigueana de efeito: “O casamento é o
máximo da solidão com o mínimo de privacidade. É ou não é?”
Amélia, a
esposa, era manicure, pedicure e designer de sobrancelhas. Não fosse atender a
domicílio, mal saía de casa, arrumando-a, lavando roupa e preparando a refeição
para quando o marido chegasse e se chegasse.
Você pode
até pensar o quão infeliz ela deveria ser, contudo, dizia-se a mulher mais
feliz do mundo. Às clientes, confessava numa sinceridade suicida: “É o amor da
minha vida. A melhor coisa que me aconteceu. Sem ele não sei viver.”
De fato,
durante o namoro e nos primeiros anos, poderia até ser possível uma tal
felicidade, mas o tempo, associado a dividas intermináveis, à rasa e abundante programação
da TV e uma boa dose de tédio, massacra qualquer boa intenção.
No caso,
Jacó se rendeu a uma liberdade promíscua, enquanto coube a Amélia suportar esse
amor de casal inteirinho para si. Era, como toda mocinha de novela, feliz e
pronto, apesar da rádio calçada, ao pé da janela da cozinha, anunciar-lhe em detalhes
megafônicos as aventuras do marido.
Também as
irmãs, amigas, vizinhas, clientes, mesmo quando tinham maridos tão ruins ou
piores do que Jacó, insistiam no papo reto, de mãos dadas à liturgia divorcial
– alguém, que não serei eu, tem que se separar primeiro... – e apontavam os
defeitos do marido alheio, com rancor e intolerância, além de uma curiosa propriedade.
Numa roda
de salão improvisado, uma das clientes apontou que o carro de Jacó fora visto
estacionado na esquina de um tal apartamento. Sem tirar a vista da serrinha de
unha, Amélia justificou: “Ele adora caminhar na praça em frente. Quer manter a
forma. Um lindo!”
Outra vira
Jacó em um telefone público a poucos quarteirões de casa. Preocupou-se: “Meu
Deus, será que esqueceu novamente o celular no trabalho? Ele é tão responsável...”
Seria
verdade que ela encontrara uma mancha de batom no colarinho dele? Até riu: “Sim,
mulher, a minha sogra adora usar batons extravagantes. Ele deixa. É desapegado
e tão amável...”
Dizem que
ele estava na praia, conversando com aquelazinha, conhecida pela má fama...
Claro: “Ah, ele adora pegar um solzinho e não tem preconceito, não. Dá atenção
a todo mundo.”
Você sabia
que ontem ele estava entrando com umas compras no apartamento daquela sirigaita?
Quase bateu nos peitos: “Humm, acho que ele me disse... É tão altruísta. Um
cavalheiro.”
Exasperada
com a ingenuidade da moça, uma delas rosnou: “Abre os olhos, criatura, só você não
vê que ele não te ama!!!.
Nessa hora,
todas se calaram estupefatas diante da ousada e medonha sentença da amiga. Amélia,
como se despertasse de um sonho de algodão doce, levantou-se de seu banquinho,
atirou para o lado a toalhinha e a ternura e, indignada, tascou: “Ah, minha
filha, aí já seria sorte demais!”
leio Raymundo buscando essas nuances da escrita, o inusitado, o diferente, seja na linguagem, seja na reviravolta que a história dá. muito bom. parabéns
ResponderExcluirUma leitora atenta, como sempre. Muito obrigado, amiga Lucyrene.
ExcluirGosto bastante de ler seus textos, não sei escrever belas palavras demonstrando isso...mas as atitudes " Rodriguianas" foi o máximo...
ResponderExcluirGostaria de saber quem é você. Aparece para mim como "Unknown" e eu gostaria de responder-lhe diretamente. Mas, já agradecendo pela sua leitura.
ExcluirMais um presente ler a crônica de Raymundo Neto. A de hoje está brilhante. Fraterno abraço
ResponderExcluirPresente, para mim, é a leitura de vocês, Malvinier. Muito me orgulha. Grande abraço.
ExcluirNão sei quem é mais escroto, se o Jacó ou a Amélia. Mas quem é bom em escrever uma boa história, isso eu sei.
ResponderExcluirObrigado, Zelíssima. Infelizmente, esse casal é bem real. No mundo, nada de estranho...
ExcluirLeitura agradabilíssima. Surpreendente.
ResponderExcluirMuito obrigado pela leitura.
ExcluirEsse Jacó!
ResponderExcluir... e essa Amélia... rsrs
ExcluirEsse Jacó !
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