A mulher só se vestia de preto. Assim como pretos
eram os seus móveis, os talheres, pratos, as cortinas, o abajur, os estofados, a
graúna, o sorriso e o gato. Nada de flores na janela, nem folguedos de crianças,
beijos de novelas ou esperanças. Pior: a casa toda era esmorecida, rancorosa,
viciada em grave e infindável melancolia. Imersa na solidão das horas vãs, maisqueria
se jogar pela vidraça, sentir o gume ligeiro dos seus estilhaços, apartar-se mole
pelas coxias, diluir-se entregue nas bocas de lobo, acolher de bom grado o peso
imposto do telhado carcomido, eriçar o pelo na tomada da parede, engolir trufas
até docemente estourar, calar de vez o vazio do peito e a loucura a pinçar-lhe obscuras
e desgrenhadas ideias.
No seu quarto, asilo maior daquele
mal-estar olímpico, a cama nunca feita, o travesseiro enfronhado de mágoas. Via-se
ao corredor de tacos frouxos roupas urdidas e abandonadas em sujidades
pretéritas pelo caminho. No banheiro, o espelho coberto por toalha e o chuveiro
inútil. À cozinha, a torneira pingando na louça desapressada e a umidade pustulando
nas paredes rotas em papel.
Ao longo dos dias, a graúna sem canto, o
gato sem língua, o silêncio apenas cortado pelo, então, estrondoso zunir de
asas de insetos. Livres, apenas os insetos.
Anos-há, ali, a mulher não concederia abrigo a ninguém, nem ao Sol nem à Lua.
À Martir, sua irmã, apenas a ela, permitia
o ingresso naquela casa, e unicamente quando trazia os suprimentos para a despensa
ou eventuais mezinhas.
Martir, abafada de calor, sentava-se na
marquesa ao lado da janela e ensaiava abrir as cortinas, quando imediatamente reprimida
pela irmã: “Não abra! Doem-me os olhos. Deixa assim, deixa!”
Martir insistia: “Mas o ar, mulher, como
você suporta isso?”
“Que ar? É ar que você quer? Então vai lá
fora, vai. Lá fora tem de sobra!”, respondia, apontando-lhe impaciente a porta
da sala.
A irmã se calava, resignada como estátua
de jazigo. Detinha-se, porém, no instante de um suspiro. Sempre ansiou por uma
palavra, qualqueruma: confissão, recomendação, curiosidade, descuido ou o que
quer que fosse, mas nunca. Não suportando tanta mudez e o olhar quase de vidro,
despedia-se, a prometer a si mesma nunca mais pôr os pés naquele ninho da morte:
“Você é louca, só pode ser... E eu devo ser mais se um dia eu ainda voltar
aqui!”
Uma manhã, a mulher acordou e viu, de
relance, os pés escuros como tisne. Esfregou as mãos nos olhos na tentativa de
enxergar melhor, quando percebeu, também elas, mãos e unhas estranhamente enegrecidas.
Pensou em gritar, pedir socorro, mas para quem? Não havia outra alma em casa. Não
sabia o nome dos vizinhos e mesmo se os tinha. Mesmo assim, gritou, mas a voz
não lhe saía, e, sim, uma névoa espessa como a fumaça abundante de velhas locomotivas.
Correu ao banheiro para lavar o rosto e
descerrou o espelho coberto há anos. Aterrorizou-se pela própria imagem: apenas
os olhos, ainda que cinzentos, reconhecia. Os cabelos grossos e rentes lhe
desciam como raízes rijas pelos ombros, pelo peito e abdome.
Amolecida, ela deitou em sua cama e, aos poucos, sua pele pôs-se a descamar. Como cinzas de uma fogueira, esses restos de corpo se deslocavam flutuantes e leves pelo ar.
Aos poucos, o seu ser,
todo ele, se confundia com as folhas da mais absoluta escuridão, a ponto de não
restar dela sequer o nome, a história, uma saudade nem pensamento.
ouso dizer que vc se esmerou, que vocábulos, linguajar digno de um Guimarães, se apoderou de vc um Caio Fernando. como, mesmo sendo tão bom, em tudo que produz, consegue suplantar os anteriores? por isso, nos curvamos, Raymunetes, suas fãs. um abraço Raymundo, bom, muito bom.
ResponderExcluirLucirene, minha amiga, muito grato pela sua atenção de sempre e sua avaliação muito perspicaz de leitora "de com força". rsrs Forte abraço
ExcluirEntão você passou o domingo na companhia do Poe... ? Foi? O que lhe rendeu esse conto preto de bom! Muito bom!
ResponderExcluirEu fiz na sexta. rsrs Acho que estava meio melancólico. Mas passa, ainda estou nesse plano, viu? Abração, Zelinha.
ExcluirExcelente! Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, amigo Luciano, pela leitura e retorno. Grande abraço
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