“Não há no mundo quem te ame mais do que
eu! Não tem, viu?”
Augusto ouvia essa cerimoniosa, sonora e indefectível declaração todos os dias durante anos de casamento. Sabia: depois dela, inútil argumentar. Assistiria, então, à saída dramática da esposa, dando-lhe as costas e enxugando os olhos correntes. Depois, ela se enfurnaria no banheiro por horas, como a contar diante do espelho uma a uma das lágrimas roubadas. Mesmo assim, ainda o despertaria, a hora que fosse, abandonada de si, rogando quilométricas desculpas e promessas em nome daquele imorredouro amor.
Camila o amava demais. Mais do que o permitido por lei, de forma quase abominável. Maior do que ele, apenas a insegurança e o ciúme devotados àquele marido severamente asfixiado: “Te respeita, mulher... Me deixa em paz!”
Noites
demais, Augusto despertaria subitamente por Camila, em olhos transfigurados: “Você
ainda me ama? Eu te amo, te quero tanto...”.
No começo, ele
achava aquilo “engraçadinho”, “fofo”, mas com o tempo e a insistência, tornou-se
in-to-le-rá-vel: “Meu Deus, eu não posso nem mais dormir?”. Também quando
assistia às partidas de futebol ou lia atento o seu jornal, era comum ela
inventar motivos para ficar passando na frente da TV, mudar o canal ou
enganchar-se ao seu pescoço, cobrindo-lhe de beijos caudalosos, a tentar
levá-lo para cama.
Com o
tempo, Augusto passaria a chegar mais tarde em casa, fazendo qualquer coisa ou
coisa nenhuma, na vã tentativa de ela já estar dormindo. Mas Camila o esperava
sempre. E, com o entusiasmo de abertura de loja em promoção, jogava-se em cima
dele – mais e mais beijos –, trançava um rol de perguntas incômodas, comia do
seu prato, fuçava sua mochila, os bolsos da calça, cheirava suas roupas. Uma
obsessão medonha.
Quando encontrava
a mãe, irmãs ou nora, aflita, exasperava-se no relato da incompreensível agonia
do marido. Elas recomendavam fosse devagar, com calma, afinal, ele não lhe dava
motivos para ciúmes ou desconfiança. Ela revoltava-se: “Coitadas de vocês que
nunca sentiram um amor assim como eu. Eu morro de amor. Morro!” Entreolhavam-se
em silêncio e com certo pavor.
Um dia, ele
chegou mais cedo em casa. Calado, desviou-se dela e dirigiu-se ao quarto do
casal. Lá, começou a sequestrar as roupas do armário e lançá-las numa velha
mala. Camila, perplexa, o questionava. Augusto, numa sinceridade perversa,
bradou: “Não te aguento mais! Vou-me embora daqui antes que...” Nem concluiu.
Ela já estava aos seus pés, súplice como uma escultura de Claudel, na defesa de
seu amor eterno. Mal sabia ela que, para ele, “eterno” soava como “inferno”. O
inferno daquele amor.
Com a mala
em punho, empurrou a mulher e correu para a escada. Camila, desesperada, saltou
e agarrou-lhe as pernas, fazendo com que ele tombasse pelos degraus até o
encontrarmos estatelado no soalho frio, ora tinto de sangue entornado da cabeça.
Meses
depois, Augusto voltaria a casa. Com o trauma, imóvel do pescoço para baixo.
Não conseguia falar e, agora mais do que nunca, era-lhe difícil engolir. Porém,
enquanto todos cuidadosamente tentavam consolar a esposa, dar-lhe força, parecia
ser ela a menos abalada. Sorria com mais frequência no desvelo exemplar ao seu marido
paralítico.
À noite,
então, do nada, acordaria com forte abraço o indefeso Augusto, entregue e
inerte na sua cama-cárcere: “Está sonhando com o quê, amor? É comigo, não é? É
comigo?”
"Com entusiasmo de abertura de loja em promoção" é bom demais e diz tudo desse conto
ResponderExcluirfinamente agridoce!
Grato, Tião, pela leitura e comentário. Agridoce ou acredoce, amar é isso mesmo? rsrs
Excluirque grudenta, insaciável e sem o mínimo de auto-estima, credo!melhor para ele ter morrido de vez. Raymundo e suas criações maravilhosas. adooro
ResponderExcluirrsrsrs Minhas recriações, querida Lucirene, pois esse povo todinho, todinho está espalhado pelo mundo... rsrs Obrigado pela leitura. Abs
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