Publicado originalmente em Os Acangapebas
Domingo. Onze horas. Como se marcada hora,
barulhentos, acabavam de chegar. Enfileiravam-se à grade branca entreaberta por
saudações breves, tomadas de rostos, beijos vãos. As netinhas, em cabelos de
rabos de cavalos, à frente e com solicitação do pai, apresentavam as bonecas,
imediatamente esquecidas diante da tevê na sala.
Os filhos,
genros e noras, à cozinha, traziam nos olhos indisfarçáveis traços da preguiça
ou da curtida noite alta. Colhiam jornais e a correspondência desviada,
cumprimentavam o pai a levantar sorridente da cama — sem omitir saudades — e a
mãe a empunhar flores do quintal. Puxavam os bancos para o oitão, a área mais
ventilada, enquanto outros vasculhavam a geladeira em busca das guloseimas que
lá já não estavam desde a meninice.
Hora do almoço! Todos tomavam os seus lugares, os mesmos e respeitados lugares, pequenas hierarquias. O avô se deliciava à larga cabeceira da mesa de pinho feita à encomenda para caber a família. A avó não sentava enquanto todos não estivessem fartos.
Ali, outra mulher, por trás do balcão americano, com olhos postos à
pia no manejo da asa de uma caneca tomada em sabão, ouvia tudo, sabia de tudo,
analisava-os, percebia-lhes as mentiras, as vaidades, a disputa entre irmãos
pelo amor filial. Espremia-lhes com os olhos e torcia a inveja da boca.
Assim, aos
domingos: preparava o almoço, os pratos de um e de outro, mais pratos, a
sobremesa com um doce especial, a correria da criançada a lhe pedir tudo, sem
reconhecê-la nunca, sequer chamá-la pelo nome, e mais pratos. Depois disso, só
solidão e silêncio. Percebia-se velha e acabada, não dava mais conta. Sabia-se
apenas para servir. E só!
Num domingo
diferente, postou-se à cabeceira por trás do avô. Pediu as falas com um sorriso
quase terno, a espanar no ar um pano de prato. Na voz rouca e analfabeta
desalinhou um segredo: pôs veneno! Daquela macarronada tradicional de família,
tudo acabaria ali e agora. Pronto era só isso. Desculpasse, mas não aguentava
mais.
Um jovem pai
desperta, corre desesperado por um corredor de soluços, vômitos e gritarias
sufocadas. Na sala, as suas menininhas, felizes, limpavam com o bracinho
rechonchudo o sorriso lambuzado daquele molho gostoso, receita da vovó.
taí, velha sorrateira, invisível é? pois sim! engenhosidade nessa cabeça. muito bom!
ResponderExcluirO ser humano é capaz de um tudo. E, muitas vezes, atos como esse podem, na cabeça doentia, ser uma ação de muita renúncia e de benção.
ExcluirÉ, a velhice nem sempre é bem aceita pelos filhos e netos. Esse pecado com meus pais, não cometi. Ah! se ainda estivessem conosco.
ResponderExcluirExcelente, meu amigo. Alguns não entendem, mas velhice para certas pessoas é uma ruína. Principalmente quando só serve para servir.
ResponderExcluirQuantos sentimentos vão se sobrepondo na alma ao longa de uma existência e um dia, o que tava represado se traduzem numa atitude surpreendente. Muito bom!
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