segunda-feira, 12 de abril de 2021

"Ilusionista", de Raymundo Netto para OPOVO


 Samuel, quando veio ao mundo, em vez de chorar, clamava: “quero ser mágico!”

Assim, desde de a sua meninice, peregrinava por jornais, revistas, manuais e internet e colecionava álbuns de figurinhas em busca de conhecer e se aproximar dos grandes prestidigitadores de sua época. Nesse intuito, fugiria da casa paterna resolvido a apreender os segredos milenares e maravilhosos do ofício.

Debulhadas inúmeras folhinhas de parede, o adolescente se via perdido, sozinho e faminto num mundo de inimaginável realidade, até a chegada na cidade do famoso Gran Circo Internacional. Entusiasmado, Samuel se dirigiu a ele, enfrentando a fila de pretendentes a serviços temporários, pois faria qualquer coisa, desde que pudesse se aproximar de Eugênio Roudin, o mágico, o melhor de todos. 

Aceito, passava o dia varrendo e limpando a coxia, lustrando objetos e, no momento do espetáculo, carregando pesos, vendendo pipoca, milho verde, balões e brinquedos de néon. Ali, dessem qualquer espaço, Samuel não perdia a oportunidade de anunciar: “Seria o maior mágico do mundo!”

Às noites, no sereno frio da manta naftalínica, seduzido pelo vagalumear das estrelas perdidas na vastidão do cortinado negro, fantasiava o seu picadeiro de encantamentos.

Um dia, de tanto se enxerir, perturbar a todos e assediar Roudin, conseguiu arrancar dele a promessa de treiná-lo como seu assistente. Seu objetivo, enfim, se realizaria.

Porém, para a surpresa do mágico, apesar do entusiasmo e a declarada paixão pela arte do ilusionismo, quando Roudin pôs numa mesa uma série de objetos utilizados em seus truques, como baralho, cordas, lenços, flores artificiais, moedas, dados, argolas, entre outros, o rapaz se resumia a esfregar as mãos e fitá-los com uma ansiedade vazia de qualquer experiência. Roudin pensou: “Teria que começar do zero!”. Para piorar, quando o fez, tudo indicava que Samuel não tinha a menor aptidão para a coisa. Era desastrado, desconcentrado, uma tragédia: um coelho descia-lhe pela perna da calça, se enrolava em lenços coloridos, tropeçava em fios de náilon disparando papéis coloridos pelo colarinho, escapavam-lhe pombos pelas mangas da camisa, esparramavam-se copas e ouros pelo chão... nada haveria de dar certo.

Após várias tentativas e frustras recomendações, Roudin surtou. Era uma absoluta perda de tempo... do seu tempo! Já não entendia de onde o rapaz tirara aquela ideia de que um dia poderia ser mesmo um mágico de verdade. Era, isso, sim, um inútil e grandessíssimo pateta que jamais dominaria o universo da magia.

Os colegas de circo, sentados nas arquibancadas a admirar os ensaios do garoto, nunca haviam visto o elegante mágico perder as estribeiras. E alguns, por considerarem Samuel um tanto pedante pelas suas incontáveis afirmações de ser o maior mágico do mundo, diante de suas trapalhadas, gargalhavam e o vaiavam a valer, numa estrondosa, constrangedora e irremediável humilhação

Transtornado, Samuel assistia ali, por meio da plateia de seus próprios colegas e mentor, o coração dilacerar em rasgos perversos de solidão. Ainda diante do achincalhamento geral, abaixou-se, sacou um punhado de terra molhada por suas lágrimas, moldando com ela uma ave entre as mãos. Soprou seu bico e, como que puxando alfenim, fez crescer o grande pássaro vermelho a emitir sons dolorosos e estridentes. O fracassado artista, então, saltou sobre seu dorso, subindo em voo ligeiro através das estrelas costuradas na lona circense, sabe-se lá Deus para onde, determinado a nunca mais acreditar em sonhos.



8 comentários:

  1. um espetáculo de verdade. parabéns Raymundo

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    1. respeitáááável público, ladies and gentlemen, o maior espetáculo da Terra... rsrs Obrigado pela leitura de sempre, Lucirene.

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  2. " Eles são muitos mas não sabem voar." O pavão(E. Roudin) é misterioso; a criação é mistério. Terra e palavra, com uma e com a outra, mistérios de encantar. Vai, Samuel, é chegado o sétimo dia, descansa de tanta peleja misteriosa; fizeste o mistério alçar voo. Mas tu, Raymundo, mesmo aos 777 anos não poderás descansar. A palavra cria e recria o mistério. Quando o barro misteriosamente perde a graça, a palavra recria o mistério pelo encantamento da graça. Algum anjo pleno do mistério disse: vai, Raymundo , vai ser samuel de palavra ( não de sonho ) até aos 777 noves fora tudo .

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    1. Vou depois juntar todos esses apontamentos e publicar um livro "Manduquices" rsrs Valeu 777 vezes, prof. Armando Lucas.

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  3. Fico encantada, com suas crônicas, fico torcendo para elas, não terminar,em, sentimentos bons, não desejamos que ele acabe.
    Gostaria de saber escrever palavras edificantes para te dizer o quanto admiro o que tu escreves..mas vc sabe sou péssima neste assunto.
    Abraços de uma leitora rodriguiana.
    E também Raymunete.

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    1. Puxa, aqui aparece como "Desconhecida", mas sei que não é... e deve ser do CPLI. rsrs Apareça! rsrsrs Para eu comentar para você mesma.

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  4. Querido Raymundo Neto!
    Sempre surpreendente e maravilhoso!
    Também sou Raymunete!
    Grande abraço!

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  5. rsrs Nice, sempre um prazer ter a sua leitura. Forte abraço, amiga.

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