Dadivosa era
mulher para homem nenhum botar defeito. E não apenas homem, pois mesmo as
mulheres, que sabemos ter o olhar microscópio e imperdoável para as falhas
congêneres, nela, exaltavam: “É perfeita!”
Quando saía
à rua, ao final da tarde, pintava de céu aquele chão. Todos queriam saudá-la, dignar-se
um seu sorriso – lindo demais, ai, meu Deus –, ouvir de sua voz o cantar de “boa
tarde”, tão feliz quanto o sonoro anúncio do carro do pão. Meninos e
cachorrinhos corriam à sua volta, homens e mulheres se digladiavam às brechas
de portas e janelas, até os artríticos velhinhos se punham em pé. Faltava muito
pouco para ser santa ou milagreira.
No entanto,
na vizinhança, um mistério passou a rondar a moça.
Marcelo, um
rapaz que cresceu no bairro com a fama de “bicho-papão”, jurava ter emplacado um
discreto romance com ela. Mas, quem diria, depois disso, mudou completamente.
Parou de beber, sair às festas, conversar com amigos, largou o emprego e, por
fim, mudou-se de cidade. Porém, antes de partir, confidenciou ao Maneco, garçom
do bar predileto: “O homem que tem a Dadivosa não presta mais.”
Confessionário
de bar não guarda segredo e, de boca a boca, aquele enigma passou a atiçar a
outros militantes do amor livre, que, cada um a seu estilo, se aproximava da
moça com o mero intuito de quebrar aquele tabu. Mas, era regra: após todo o
farol dos primeiros dias, contados em salão para ouvidos curiosos, os outrora
confiantes galanteadores se rendiam ao ostracismo completamente e confirmavam:
“Homem que tem a Dadivosa não presta mais! Presta mais, não”.
Genésio, moço
bonito e com autoestima de 13 andares, recém-chegado na cidade, quando soube do
fuxico, zombou: “Cambada de macho frouxo... Pois eu mostro como se doma uma
potrinha. Cadê Dadivosa? Cadê?”
Como cena
de filme, justo naquele instante, ela cruzava ritualmente a rua, emprestando à
tarde o seu brilho crepuscular. Aqueles homens emudeceram e Genésio, entendendo
ser aquela o seu alvo, não negou: “Uma bicha dessas deixa um cabra
atoleimado... Me aguarde...”
Alegres, os
papudinhos de plantão abriram apostas e pagaram muita cerveja para o valente moço.
Não tardou
e ele chegaria à solitária Dadivosa, muito calada e então encantada com o seu
palavrório experiente e sentimental. Um pulo para, com jeito, convencê-la a ir
a um motelzinho de beira de estrada, porque na cidade “não tinha coragem,
não... Imagina!”
Genésio se
sentia um Deus, tendo aos seus pés o olhar doce e quase virginal da jovem, até
que, ao fechar a porta do quarto, sentiu quando ela puxou agressivamente suas
roupas, rasgando-as. Ele, surpreso, a princípio, pedia-lhe calma. Porém, ela,
ensandecida, não o atendia: dava-lhe na cara, o arrastava pelo chão, mordia
seus dedos e ombros, se jogava por cima, puxava-lhe os cabelos e os pelos, berrava
alto e gargalhava o tempo todo, a ponto de o rapaz quase desmaiar de desespero
e de dor.
Genésio pedia
para parar, “jogava a toalha”, sentia-se mal, agarrou-se à maçaneta da porta,
mas ela o trazia de volta todas as vezes até não poder mais...
Passados
alguns dias, os amigos de bar, acostumados ao paradeiro daqueles pretendentes à
Dadivosa, já dividiam o fruto das apostas, quando Genésio apareceu. A turma
comemorou. Contudo, ele nada falou, apenas sorria trêmulo num canto de boca a
sacudir a cabeça.
Não
confessaria, mas quando Dadivosa o procurou no dia seguinte, não atendeu.
Dissessem que não estava, que ninguém sabia dele ou que morreu. À noite, em seu
quarto de pensão, deitava na cama o seu corpo ainda todo arroxeado e se
esforçava para dormir no travesseiro molhado de suor e lágrimas, forrado de pesadelos
intermináveis com aquela cruel e insaciável devoradora de homens.
Caramba. Que dadivosa!
ResponderExcluirUma dádiva, não é Macário? A dor depois é que são elas... rsrsrs
ExcluirBom demais. Kkkk
ResponderExcluirObrigado, Fabreu. Sempre bem-vinda, querida.
ExcluirNossa! Pior do que a Dadivosa só a Mãe de Pantana kkkk do filme O homem que desafiou o diabo. Boa demais sua crônica, Raymundo.
ResponderExcluirVixe, e eu perdi esse filme? Menina, vou atrás. rsrs Obrigado, Zélia.
ExcluirSe é crônica tem um pé no fato ocorrido também. A Dadivosa parece existir por aí! Dei maior valor!
ResponderExcluirHahaha Se existe, afasta de mim esse cálice, Pai... Abraço, Carlos.
ExcluirMenino! Eita Dadivosa perigosa.
ResponderExcluirMuito bom, Raymundo Netto
Sim, algumas delícias da vida têm preço, Malvinier... rsrs Muito obrigado pela leitura.
Excluir" Confessionário de bar" (Que este blog seja discreto!), mas é que estou tão moído quanto Genésio. Dói-me o corpo: assim como Dadivosa, Gargalhosa sacudiu este leitor, de cabo a rabo ( Ah! Uma Dadivosa para socar uma máscara no rabo do Dudu bananinha a cabo de vassoura.), com tal ordem de intensidade que me caiu a máscara do comedimento. Aqui vai _ mantenho apenas o tratamento. Seu Raymundo Netto, que síntese de imagem! Fazer a unidade do reservado com o escancarado, do interior com o exterior, da discrição por abstrato com a indiscrição por concreto-existencial, fazer esse par de disparidades _ " Confessionário de bar "_ confinar-se numa unidade explosivamente contida é uma ďádiva; é uma dádiva do esforço estético-criativo. E que oxímoro curioso vivenciou este leitor: assim como o fogo que arde sem se ver, daquele fulaninho caolho ( Olha o que faz a falta de comedimento de bar neste confessionário de blog!), senti-me moidamente afagado. E Dadivosa? Sem brincar em serviço de dar ( Dar ao chão o céu, à mulher a perfeição, ao homem a passibilidade de humanização do macho, à criança e ao animal o afago do carinho, à janela o debruçar-se deste e daquela.) dá ao dia a dia, em vez da mesmice, o enigma que tanto atiça a curiosidade que se tece em comentário de boca em boca, quanto faz do homem ordinário o homem lampião. A curiosidade vicejou_ seu tecido ganhou nuances; os lampiões, por obra dos assomos dadivosos, se apagaram. Em caso de Dadivosa, nem Genésio deu jeito, contrariando o dito de " só Genésio na causa".
ResponderExcluirGenésio não é páreo para dadivosa, mulher de verdade, mais do que Amélia, tão cearense e mais paraibana do que a mulher-macho, sim sinhô... Quem não pode com o pote não segura na rodilha... Obrigado, seu Manduca, que acabe de vez essa pãodemia e a gente possa visitar um confessionário democrático de bar... rsrs
ExcluirEita!! Inventa, de se meter com Dadivosa...kkkkk
ResponderExcluirEu mesmo, jamais. É muita areia para meu caminhãozinho... rsrs
ExcluirEita!! Inventa, de se meter com Dadivosa...kkkkk
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirMuito grato por sua leitura, Frederico. Abraço.
ExcluirRaymundo, acho que você errou o nome dela. Devia ser MANTICOROSA, como toda devoradora de homens é.
ResponderExcluirHahaha Você já está inventando, Cayman.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirDadivosa: o bônus e o ônus. Rsrsrs Parabéns pelo texto!!!
ResponderExcluirGrato (sempre) pela leitura e pela divulgação, Dudu. Abração.
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